Críticas

Crítica | Aquarius

Deixando de lado toda a polêmica na qual Aquarius está envolto, é preciso discutir o filme pela obra em sí, por suas qualidades e defeitos que fazem qualquer produção cinematográfica se sustentar. Aqui não é diferente, temos um filme bastante maduro, com uma protagonista complexa, elenco de apoio inspiradíssimo e um roteiro que garante excelentes diálogos ao longo da projeção.

Colhendo o sucesso de crítica de seu filme anterior “O som ao redor”, o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho dessa vez constrói uma obra intensa para gente grande apreciar. Desempenhando brilhantemente Clara, Sônia Braga empresta sua personalidade forte para uma jornalista aposentada, sobrevivente de um câncer e intensa em suas relações pessoais. A moradora do Edificio Aquarius, em Boa Viagem (Recife), é a única que restou do prédio todo. Uma construtora determinada a demolir o antigo prédio e construir um novo Aquarius passa a assediar a senhora com o intuito de fazê-la desistir de seu charmoso apartamento cheio de história e de objetos significativos.

Estruturado em três capítulos, Aquarius desenha toda a construção da personagem de maneira habilidosa. Amarra o público em conflitos bastante cotidianos como a dificuldade de se relacionar com seus filhos, briga de vizinhos, dificuldade em encarar inovações tecnológicas… Cheio de diálogos memoráveis, o filme empresta muitas de suas cenas a longas conversas familiares como a “intervenção” que os filhos fazem com Clara para entender os motivos dela querer ficar no Edifício antigo ou a cômica entrevista que uma jornalista a indaga se ela já se adaptou a ouvir música em MP3 diante dos inúmeros vinis que decoram seu apartamento todo.

Neste filme, há um importante espaço para música. É como se Clara fosse movida a canções, então são inúmeras intervenções que a agulha deslizando no vinil traz a história, seja com uma canção do Queen, Maria Bethânia ou Taiguara. Em determinado momento de uma discussão com sua filha, simplesmente passa a entoar Paulinho da Viola em um belo momento de tensão mãe/filha.

Com frases ácidas e inspiradas como “Se é bom é Vintage, se é ruim é velho”, Clara é uma mulher que tem dificuldade de se desapegar de seu refúgio na praia de Boa Viagem. Sua rotina, envolta em seus objetos retrôs, junto a empregada doméstica e uma aventura aqui e acolá, passa a ser perturbada pelo jovem Diego, que “com sangue nos olhos” decide liderar a construção do novo empreendimento, o novo Aquarius. Porém, a medida que o filme transcorre, percebemos o quanto Clara finca cada vez mais suas raízes em seu reduto. Ela não amolece, não desiste ou se deixa seduzir por qualquer investida oferecida pela construtora.

Aquarius é cinema de qualidade, uma pérola no meio de produções duvidosas brasileiras de comédia. É cinema que bebe no cinemão europeu, com simbolismos, pausas contemplativas nos diálogos e a carência de respostas muitas vezes. Não há caminhos fáceis no roteiro de Kleber. Dessa forma, é difícil dizer se boa parcela do público terá paciência para os 142 minutos de duração com uma trama não convencional para os padrões brasileiros.

Eis também um filme sobre o sentimento de se apegar ao significado dos objetos e das relações interpessoais. Aqui não há espaço para Iphones ou Whatsapps, no mundo de Clara nada substitui o cheiro e a representatividade de tirar um disco da embalagem e coloca-lo para tocar. Ela se apega a história das coisas, e seu apartamento carrega uma boa dose de emoções que representam tudo para ela. Abrir mão disso é abrir mão de tudo o que ela lutou para ter.

Sem mais delongas, o filme tem qualidades de sobra e é um tour de force para a carreira de Braga, que enfim, depois de muito tempo, ganha um papel para deitar e rolar com seu talento. Escolhida a dedo, a música “Hoje” pontua a narrativa do filme soberbamente e não poderia ilustrar melhor a epopeia de Clara: “Hoje…Trago em meu corpo as marcas do meu tempo…Meu desespero, a vida num momento…”

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