Críticas

Crítica | Bingo: O Rei das Manhãs

O diretor Daniel Rezende disse que queria a melhor das equipes para realizar seu primeiro filme solo. Eis que tivemos, no time deste diretor cuja carreira fora construída no montagem dos filmes – foi o montador de Cidade de Deus, A Árvore da Vida, Tropa de Elite, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias -, Beto Villares (O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, Abril Despedaçado) na trilha sonora, Cássio Amarante (Abril Despedaçado, Xingu) na direção de arte, Verônica Julian (Xingu, Vips) no figurino e Lula Carvalho (Tropa de Elite, Paraísos Artificiais, O Lobo Por Trás da Porta) na fotografia. Além do mais, teve Luiz Bolognesi, escritor de Uma História de Amor e Fúria e Bicho de Sete Cabeças, como o roteirista.

O projeto escolhido por Rezende foi uma história de tragédia quase que ortodoxa, misturando elementos do arco narrativo típico de um Édipo Rei – uma história de ascensão e queda – contudo usando de um arquétipo romântico como protagonista. O escopo, o pano de fundo para esta tragédia romântica, é o que, contudo, dá o brilho de autoria e destaque à estreia de Rezende: nosso herói trágico-romântico seria o Bozo. Na verdade, seria inspirado em um dos intérpretes do Bozo: o personagem protagonista Augusto Medes fora baseado em Arlindo Barreto, ex-intérprete do Bozo cuja carreira durante os anos 80 foi interrompida por complicações com drogas e questões familiares.

Agora, faltava a Rezende apenas o elenco para ter em mãos as peças do quebra-cabeça. E para o papel de Bingo – um nome genérico dado o não autorizado uso do Bozo para o filme – foi escolhido Vladimir Brichta, ator conhecido por sua carreira na comédia e agora com um papel trágicômico em mãos. O resultado final foi que Rezende atingiu um longa louvável. Um belo trabalho de direção, que pensou bem em como emoldurar e contar uma narrativa de forma empática, envolvente, magnética e intensa. Além disso, propõe um exame sobre a cultura pop brasileira, sobretudo aquela dos anos 80, concluindo seu caráter carnavalesco e por vezes erótico, seu vínculo aos programas de auditório da TV aberta e os pontos que o distinguem do público americano – por mais que recorrentemente os cânones do pop americanos sejam a fôrma da nossa indústria do pop.

Tendo em vista a história da narrativa, além dela própria ter sido construída em torno de moldes ortodoxos à tradição novelesca, Rezende arquiteta suas estratégias narrativas e a linguagem de Bingo buscando referências tão quanto arquetípicas à história do cinema. Sabe, astuciosamente, coreografar toda a misce-en-scène para que esta reforce a força afetiva que cada cena pretende expor. As cores saturadas e amareladas, as sombras duras, a câmera na mão, tudo isso reforça o tom sebento e poluído com o qual se quer traduzir a virtude impudica, inescrupulosa e indigna do vício pela fama e pelo poder que infecta Augusto – ironicamente assim nomeado, dado o significado de magnífico, majestoso e resplandescente por trás do nome -, um fruto desta sociedade narcisista e egocêntrica e que vê, como consagração máxima desta necessidade de poder e egocentrismo, a fama – e esta como promessa de felicidade, assim como propagandeia a indústria cultural.

O que Rezende faz é uma Norman Desmond, de Crepúsculo dos Deuses, adaptada à cultura pop brasileira – das chanchadas e dos programas de auditório. Há, neste Bingo: O Rei das Manhãs, um toque crítico à indústria cultural e sua coisificação da personalidade humana, que transformam seus artistas em objetos de consumo e, portanto, figuras descartáveis. Primeiro, essa indústria vende a ideia do lazer e prazer efêmero – o que abarca a fama – e também do consumo como felicidade – um círculo vicioso que leva à angústia dado o caráter efêmero e frívolo destes. Além do mais, ao transformar alguém em um objeto de consumo, despersonifica e mascara o sujeito, atribuindo-lhe aspectos e necessidades massificados, sem essência – e talvez daí seja tão importante à trama e tão crucial para a angústia e crise de Augusto Mendes provindas do seu contato com a fama o fato de sua identidade nunca poder ser revelada, sempre mascarado por trás de um nariz de palhaço que, quando estampado em um produto ou anúncio, vende milhões.

Mas ainda, há um toque de Cidadão Kane na figura de Augusto Mendes. Na verdade, o que há de Charles Foster Kane em Augusto Mendes é o mesmo do que podemos traçar uma interesecção entre a invenção de Orson Welles e os personagens de Ebenezer Scrooge (Um Conto de Natal, de Charles Dickesn), Jacinto (A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós) ou, para um caso atual, os recentes personagens dos filmes de Paolo Sorrentino – como o Jep Gambardella (Toni Servillo) de A Grande Beleza. É o velho clichê da corrupção do poder e da riqueza, da avareza e sovinice que castra os sentidos de empatia e afetividade, originando uma percepção cada vez mais individualista de mundo. “Sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro.”, perde-se o afeto e o deleito pelos simples prazeres. “As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do assalto (…) e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho”. Traz-se “em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote” – como escreve Eça em seu livro.

É claro que Bingo: O Rei das Manhãs não é tão artisticamente sublime no nível da obra de Welles, não estou afirmando isto. Mas outra questão que os contrapõe é a maior cumplicidade de Rezende ao “american dream”, ao ideário de self made man, e também à indústria cultural, uma vez que o filme de Welles não é nada simpático quanto à imagem que deixa dos oligopólio midiático, enquanto em Bingo as críticas existem contudo também coexistindo um saudosismo à cultura pop brasileira.

Contudo, todas as referências sociológicas, intertextuais e existenciais são nulas se não se cativa com o enredo. E este cativar depende da veridicidade com a qual os sentimentos e os dramas do personagem são expostos e emitidas, a ponto de parecerem verossimilhantes a nos convocar a empatia por ele. E Bingo: O Rei das Manhãs o faz com Augusto Mendes não só pelo reforçar desses dada a boa direção de Rezende que, como dito, os traduz muito bem pelas ferramentas narrativas presentes tanto no roteiro como na mise-en-scène – seguindo, digamos, como também já dito, uma direção bem ortodoxa a um estilo mais hollywoodiano contudo usando-o com personalidade e expressividade – mas, claro, também pela forte representação dos atores. Sem as elucidadas atuações de Brichta, que faz jus à responsabilidade de ser o centro do filme, e de uma sempre ótima Leandra Leal que ficam como destaques, e sem as quais Bingo teria ido por água a baixo. Não foi e rendeu um dos melhores trabalhos da carreira de Vladimir Brichta.

Talvez a única coisa que impeça Bingo: O Rei das Manhãs de ser ainda maior seja o seu apego tão forte aos arquétipos do arco trágico e romântico, de ascensão e queda, que acabam por previamente datilografar, dada a forma esquemática que constrói o filme, os rumos do enredo. Talvez se se passasse entre a ascensão para a queda de Augusto de forma mais orgânica e natural, sem delinear brutalmente uma mudança rápida na personalidade do protagonista provocada por situações que também ganham notoriedade muito rápida e pontualmente na narrativa, teríamos maior veridicidade ainda. Outra questão nesse segmento dos arquétipos é justamente a forma ortodoxa com a qual os personagem têm, em torno desses arquétipos, construídas suas e personalidades. Em partes cruciais do filme elas ficam muito retidas em apenas reproduzir os clichês desses arquétipos, o que diminui um pouco a sua naturalidade e sua convincente subjetividade: algumas falas são prototípicas e idealizadas demais para sujeitos tão falhos. Mas isso é um detalhe minoritário em um bom longa feito por Rezende que, como ele próprio já afirmara em uma entrevista concedida, contrapõe sabiamente um signo da ingenuidade, pureza e alegria que é o Bozo ao vício, à corruptibilidade e a ambiguidade de conflitos do ser humano na figura de Augusto, denunciando a realidade da condição humana contra as idealizações que nos são vendidas.

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