Não é fácil encontrar muitos filmes que podem ser classificados como feministas. O que, contudo, não é uma surpresa para uma indústria machista como a do audiovisual, historicamente, sempre se apresentou ser. Até mesmo aqueles filmes colocados como feministas – Thelma & Louise, Tomates Verdes Fritos, Erin Brockovich, As Horas, A Criada – foram dirigidos por homens. E obviamente que ao falar isso exponho um privilégio grande que tenho por ser homem ao escrever sobre cinema (e que tenho em qualquer outra coisa enquanto nessa sociedade): é só olharmos qualquer conferência de imprensa de algum filme a estrear que veremos uma predominância masculina exagerada.
Os filmes feministas – e dirigidos por mulheres – resistem a este status quo… Cléo das 5 à 7 (Agnes Varda), Frida (Julie Taymor), A Excêntrica Família de Antônia (Marleen Gorris), O Piano (Jane Campion), Jeanne Dielman (Chantal Akerman), E Buda Desabou de Vergonha (Hana Makhmalbaf), Garotas (Céline Sciamma). Ano passado tivemos A Odisseia de Alice (Lucie Borleteau, filme de 2014 mas que chegou ao Brasil em 2016), Toni Erdmann (Maren Ade) e Certas Mulheres (Kelly Reichardt) que nos seus roteiros são tangentes a bandeiras feministas. Laiz Bodanzky acaba de lançar Como Nossos Pais, que recebeu aplausos no Festival de Berlim e levou todos os principais prêmios do Festival de Gramado. Como Nossos Pais é, como coloca sua diretora, um filme feminista. Narra a história de Rosa (Maria Ribeiro), uma mulher da classe média alta paulistana cujos ombros recebem toda a tarefa doméstica, a criação dos filhos e a manutenção financeira da casa. O marido, que posa de progressista e é enlaçado a causas sociais, não se envergonha de explorar a esposa e, caso seja perguntado, não assumiria que o faça.
Como Nossos Pais é uma história sobre uma mulher que vai gradualmente peitando a estrutura machista de sua família e da sociedade. E é também um filme sobre as relações humanas, os laços familiares e, ainda, sobre identidade. O seu grande trunfo é, sem dúvida, a direção de agudez precisa exercida por Bodanzky, que relata com grande delicadeza as situações da narrativa, sendo muito precisa e tocante na construção de cada personagem e nas nuances subjetivas destes em cada cena.
Bodanzky parece ter assumido um tom em seus filmes que, gradativamente, saíram da psicodelia agourenta, pessimista e maldita de Bicho de Sete Cabeças – seu excelente primeiro filme – para um agridoce de tendência otimista – algo meio Ozu, até mesmo nas temáticas sobre a vida cotidiana, relações familiares e conflitos de gerações. Se em seu último filme, As Melhores Coisas do Mundo, já havia esta tendência temática, em Como Nossos Pais – o título já denuncia – isso se concretiza. Contudo, voltando a falar do tom do filme, o esquema agridoce faz com que ele oscile, sabida e imersivamente, entre momentos de ternura e de depressão, entre o meigo e o amargo – como o próprio nome “agridoce” denota -, mas sempre com uma delicadeza empática que acerta o público não com a agressividade convulsiva de Bicho de Sete de Cabeças, mas com a intensa condolência lhana e singela com a qual tece os conflitos humanos do roteiro.
Bodanzky consegue, sempre, extrair um vigor e uma impavidez de Rosa que a tornam uma protagonista marcante. E o faz sem, com isso, ter de lhe desabilitar a fragilidade típica da condição humana. Está já bem explícito que o fato de Como Nossos Pais fazer personagens realistas, desenvolvidos em um grau terno de sensibilidade e verossimilhante de complexidade, comoventes por sua humanidade, faz com que ecoe uma sensação de compaixão aos seus sofrimentos e tormentas. Com isso nas mãos,falta apenas um bom tratamento do roteiro, que saiba levar a história dentre caminhos cujas tortuosidades nos instigue a piedade e a perplexidade. Contudo, é no roteiro que o longa, de leve, titubeia. Há momentos, alguns decisivos para a trama, em que as soluções dadas à narrativa são muito idealizadas e artificiais, clichês por assim dizer, o que talvez torna a narrativa um pouco mais “quadrada” e genérica do que a nota máxima, 5 estrelas, pede. Nos momentos em que isso ocorre, a impressão que se tem é que o filme trai um pouco seu realismo tão empático para saídas sentimentais genéricas.
Contudo, esta não é a impressão final que se tem do filme, e mesmo a forma como as vezes usa de situações estereotípicas de “finais felizes” ingênuos e clichês não invalida aquilo que é o seu forte: a construção subjetiva das personagens, verídica e (por ser verídica) empática – esta a chave da comoção de Como Nossos Pais, o que o faz tocar em um âmago íntimo. E a formulação realista de uma dinâmica cotidiana, por mais que seja a de um contexto de classe média alta (o que não é o típico para a maioria dos brasileiros), apenas reforça essa veridicidade e intimidade a partir da reprodução das nuances do dia-a-dia. É muito bonito acompanhar a vida de Rosa, a sua trajetória marcada pelo confronto com o machismo – que a liberta de uma série de coerções que, impelida por uma culpa socialmente imposta de “não cumprir seus afazeres de mulher”, a cerceavam de uma série de prazeres – e também pelo estreitamento com sua mãe, uma releitura mais libertadora de seu passado e outros fatores que nos levarão, na verdade, a ver um filme sobre uma mulher revendo sua identidade, redescobrindo-se – e tudo a partir de uma leitura feminista da sociedade. A relação de Rosa com sua mãe, vivida por Clarisse Abujamra, é algo muito belo do filme. Lais Bodanzky, aqui, faz uma leitura sobre os significados de ser mãe (concluídos de investigações sociais da diretora) cuja leitura em tela é de emotividade pungente, sempre realçando a essência da afetividade enquanto caracterizador de uma família – o que ajuda Rosa a rever seu casamento, os motivos dele estar aquela altura bem débil e esgotado.
E, por fim, elogiemos a belíssima atuação do elenco, sem a qual toda a empatia do filme não funcionaria, mas em especial a de uma avassaladora Maria Ribeiro em cena. Bodanzky reforça a sua precisão narrativa, sabendo manejar com perspicácia, originalidade e, acima de tudo, simplicidade todos os elementos narrativos que tem a disposição. Trabalha com a denúncia do machismo o expondo em situações pragmáticas, conotando seu caráter estrutural e diluído no subconsciente desta sociedade – e escapando de qualquer forma de tratá-lo em uma obra de arte que soe superficial e aleatória.
Para terminar, de fato agora, apenas um adendo que não faz parte da avaliação da “nota” do filme ou mesmo é uma opinião minha – é da diretora, na verdade, e as conclusões aqui principalmente cabem às mulheres. É apenas a resposta dada por Bodanzky quando a perguntei, na coletiva de imprensa, sobre se o enquadramento social do filme – o de um contexto privilegiado, branco, de classe média – foi feito tomando o cuidado de que as mulheres negras e menos privilegiadas também se sentissem identificadas à forma como Como Nossos Pais levanta as questões sobre machismo. Sua resposta foi que sim, este cuidado foi tomado, e que o recorte social da Rosa foi escolhida a dedo para mostrar que, até mesmo lá, em uma família de intelectuais progressistas, que viveram a revolução sexual e contracultura, de pensamentos humanistas, “mesmo neste universo, quem diria?, a mulher também vive essa mesma opressão invisível”. “Esse tipo de opressão que a mulher sofre (…) não é diferente do que acontece em uma família em uma outra classe social. Acho que nessas famílias acontecem muito mais coisas. Mas essas que acontecem na família da Rosa acontecem igual”.