Um dos filmes mais aguardados do ano, a continuação de Coringa, que leva como subtítulo Delírio a Dois, teve sua première no prestigioso Festival de Veneza. Considerado por alguns dos presentes como filme do ano e entediante e sem profundidade por outros, o filme se revela como uma tentativa de inovação e um misto de qualidades e defeitos, que vamos tentar compreender e analisar aqui.
O diretor
Há cinco anos, Todd Phillips lançou sua aclamada visão sobre o supervilão da DC Comics, Joker (a.k.a. Coringa, no Brasil) com Joaquin Phoenix usando a maquiagem de palhaço e vivendo o perturbado Arthur Fleck, em uma curiosa mistura de thriller com uma interpretação que me parece um misto de dois personagens dos filmes de Martin Scorsese, Travis Bickle e Rupert Pupkin.
Naquela época, embora tenha achado o primeiro filme do Coringa do diretor primoroso, por ser disruptivo e explorar temas profundos como a injustiça social, o bullying e as doenças mentais, além das matizes entregues pela interpretação de Phoenix e da beleza caótica da fotografia e do estilo de direção, do ponto de vista artístico, tambem achei o filme igualmente bizarro e até mesmo exageradamente elogiado por alguns “deslumbrados”. Mas, ainda assim, ele se tornou uma sensação mundial rapidamente. E não foi imerecido. Naquele ano, era de fato dos melhores filmes em cartaz.
Agora, a sequência está aqui, e embora acabe sendo tão estridente, trabalhosa e por diversos momentos tão tediosa quanto o primeiro filme (vi alguns colegas da imprensa dormirem durante a exibição em algumas partes do filme), há uma “melhora” em relação às alegações de violência excessiva e até despropositada do primeiro filme, principalmente devido à introdução da parte musical, com arranjos instrumentais bem trabalhados e interpretações no mínimo interessantes… mas, obviamente nem todos vão concordar com isso.
Coringa: Delírio a Dois apresenta 15 reinterpretações de músicas razoavelmente conhecidas, em especial para o público norte-americano, nas quais a compositora Hildur Guðnadóttir infundiu seus toques musicais distintos e assombrosos. Sim: os arranjos em alguns momentos causam sensação de estar vendo um filme de terror soft. Dessa maneira, o longa flerta com a possibilidade de ser um musical, de certo modo (ou algo que mirou na Broadway e acertou nos Saltimbancos) com Phoenix e outros cantando frequentemente em sequências de delírio mental, devaneio, alucinação ou escape da realidade, um pouco ao estilo de Dinheiro do Céu, de Dennis Potter. Isso dá ao filme uma estrutura e sabor que o primeiro não tinha. Mas, justamente por isso, pode ser que a recepção ao filme seja distinta no Brasil, pois embora o público norte-americano goste do formato musical nas telonas (vide O Rei do Show, por exemplo) e tenha a tradição em consumir musicais no teatro (como por exemplo Cats, Wicked, Fantasma da Ópera, etc…) , o espectador brasileiro médio pode achar despropositada e entediante tanta cantoria.
Abertura
Para mim a mais inusitada, criativa e inesperada desse ano. A abertura do filme é uma animação, em formato de desenho animado, uma esquizofrênica paródia dos desenhos animados da Warner Bros. (Looney Tunes). Além de ser interessante, essa introdução ajuda o espectador a recapitular a história até o momento, levantando a cortina para um primeiro ato empolgante que mostra como é a miserável existência de Arthur na prisão.
Lady Gaga
Outra novidade é a presença de outra estrela de peso na trama para dividir os holofotes com Phoenix: Lady Gaga. A brilhante cantora entrega bem, mas não demonstra a profundidade e humanidade que teve em Nasce Uma Estrela, de Bradley Cooper – como Harleen Quinzel (isto é, Harley Quinn).
Na trama, Gaga interpreta uma paciente psiquiátrica profundamente perturbada, que arma uma situação para conhecer o Coringa em uma aula de musicoterapia que ele tem permissão para frequentar enquanto aguarda julgamento por seus cinco assassinatos. Desde então eles se apaixonam profundamente – um pelo outro, o que se soma à auto-adoração existente de cada um, embora nunca fique claro se o narcisismo dos protagonistas é intencional ou acidental.
Há uma verdadeira faísca quando Coringa e Harley se encontram de forma nada romântica na prisão. Mas todo o filme acaba por ser opressivamente, claustrofobicamente e repetitivamente estagnado naquele irreal ambiente carcerário do universo de Gotham, com Phoenix e Gaga mantidos separados por longos períodos – e a atuação de Phoenix acaba pro ser tão unidimensional quanto no primeiro filme, embora certamente seja impactante e sua presença em cena seja poderosa (e também provavelmente será indicado ao Oscar)
Lady Gaga traz uma malícia astuta e manipuladora ao seu papel: Harley é secreta, inteligente e genuinamente perturbada de uma maneira que Arthur/Coringa talvez não seja. Ela será a Lady Macbeth da vilania do universo DC? Mais ou menos.
Não culpo Gaga pela interpretação quase “sem sal”, pois sabemos que ela faz muito melhor do que entregou aqui, conforme ja vimos em outras oportunidades (Como em Nasce uma Estrela). Se tenho alguém para culpar, serão o diretor e o roteirista Scott Silver, que co-escreveu a trama com Phillips. A história, como foi construída, não dá para a sua personagem muitas chances de desenvolvimento – em uma direção mais ousada ou em qualquer outra. E é possível sentir-se bastante inquieto com o que se vê, em especial quando o filme vai se aproximando do seu final, levando o espectador a questionar se algo remotamente plausível, triste, engraçado ou inesperado será revelado sobre Arthur, dado que a linguagem corporal do filme insiste em sua importância mítica.
Phoenix
O ator assusta o publico logo na sua primeira aparição na telona, por estar quase cadavérico! Conforme o ator revelou hoje durante a coletiva de imprensa, a dieta extrema que fez para interpretar o papel é algo que ele provavelmente não deveria mais fazer, por motivos óbvios.
A entrega do ator nesse segundo filme é mais apática e por momentos parece forçada. Contudo, a personagem está maior parte do tempo sob efeito de remédios psicotrópicos, dopado enquanto espera que seu destino seja definido por um julgamento pelos crimes cometidos no primeiro filme.
A apatia do ator durante boa parte do filme é proposital, mas também nos cansa um pouco. Durante a estada da personagem de Phoenix na cadeia / hospício, os guardas, liderados pelo sádico jovial Jackie (Brendan Gleeson), continuam perguntando a ele o tempo todo: “Você tem uma piada para nós hoje?” Mas Arthur está sem piadas e sem sorrisos. Ele se tornou um exemplo de miserabilismo.
Arthur é o maníaco comum que, de alguma forma, ao abraçar sua identidade como Coringa, transcende quem ele é. A decepção do filme é o quanto ele nos faz sentir pouco isso. Há muitas cenas com Arthur vestido como Coringa, se defendendo no tribunal, cantando esta ou aquela canção conhecida, às vezes em números fantasiosos que podem estar acontecendo em sua cabeça. Mas já não há mais perigo em sua presença. Ele não está tentando matar ninguém, nem liderando uma revolução. Ele está apenas cantando e (de vez em quando) dançando em seu devaneio.
Conclusão (ou não)
Certamente, assim como aconteceu em Veneza, onde nós não soubemos lidar ainda com o que vimos (provavelmente verei o filme novamente quando estrear nos cinemas) ainda estamos processando o que vimos.
Coringa: Delírio a Dois vai do espectro “filme do ano” até “tedioso” e “musical fracassado”, apesar de suas ótimas intenções e de uma superstar da música como parte do elenco. Logo, acredito que esse misto de loucura e tédio irá se espalhar pelas cabeças dos espectadores em salas de cinema ao redor do mundo na primeira semana de outubro desse ano.