Algo muito potente no cinema de gênero americano, principalmente pós anos 1970 e a experiência da Nova Hollywood, foi aliar um cinema agradável em relação aos códigos, clichês e convenções necessárias para adesão do público, com uma forte conexão com a realidade e os problemas de ordem social que os toca. Nesse sentido, o nome de John Carpenter é lembrado com muita força, talvez sua aclamação perante a crítica tenha demorado exatamente pelo fato de compreender muito bem as regras do terror e seus filmes parecerem mero entretenimento, fato é, que quase todos os longas deste diretor – principalmente no gênero de terror – trazem um subtexto sociopolítico muito potente. Por baixo dos panos das convenções do horror há uma profunda camada política, palpável no mundo real, fora da sala de cinema.
Talvez os anos presentes sejam igualmente difíceis aos anos 1970 e 1980 (década da maior efervescência do cinema de horror a lá Carpenter), Donald Trump não é tão diferente assim de Richard Nixon ou Ronald Reagan, a questão racial nos EUA (e no Brasil também) há tempo não era tão presente e tão flamejante. O cenário atual, por si só, já é um baita filme de terror, é como se agora não houvesse mais espaço para deixar as coisas subentendidas nas entrelinhas fílmicas, deixar o tema em evidência ainda que se esteja inserido num cinema de gênero, da adesão popular, da manipulação emocional, como todo filme de terror o é. Corra! é organização de tudo isso, um filme de gênero, com uma compreensão total do terror que se insere, deixando em evidência sua importância temática.
O longa é um filme explícito sobre a questão racial, e a obra deseja possuir essa condição, deixando sua essência temática na frontalidade fílmica. É impossível assistir à Corra! e não lembrar estar diante de um filme sobre o racismo, que questiona os pensamentos do espectador perante o tema, fazendo que seja sentido na pele uma clara alusão à opressão. Em Corra!, os códigos muito bem definidos do terror, são elaborados em torno de sua temática, fazendo com que cada susto, com que a tensão e com que a adesão emocional àquela história favoreça o tema proposto na obra, um filme que agrada os gostos de seus espectadores para questioná-lo.
Assim, é clara a inteligência do estreante em cinema Jordan Peele, conhecido por suas diversas esquetes no Comedy Center, ao construir uma narrativa que utilize todas as artimanhas narrativas e cinematográficas para absorver seu espectador, para que haja uma adesão temática sem que ele se dê conta. No longa, há uma construção extremamente eficiente do terror e da tensão narrativa, há um humor ácido, incômodo, mas totalmente funcional e por fim a crítica que permanece na experiência pós-filme vem à tona.
Corra! possui uma premissa completamente simples: Chris, um homem negro, será apresentado aos pais de sua namorada branca, Rose. Lá ele sente que os empregados do local, todos afrodescendentes, agem de maneira estranha. O protagonista passa a ficar incomodado com as situações que ali se passam, podendo haver algo muito mais perigoso naqueles comportamentos. Com o decorrer da trama tudo vai ficando ameaçador, mais absurdo e mais tenso, até chegar a seu ápice, e o thriller virar terror escrachado, a tensão explodir em violência, e as marcas do racismo virem à tona.
Engenhoso sem ser pretensioso, o roteiro de Peele é um daqueles exemplos que não existe ponto sem nó no texto do filme. Tudo colocado em cena serve para contribuir a progressão narrativa, não há gratuidade ou divagações, os elementos são deixados bem claros para que sirvam como pistas e pinças que serão desvendas ou conectadas pelo espectador a seguir. Talvez num mal de primeiro longa metragem, a direção de Peele é bem didática escancarando aquilo que seu espectador deve enxergar, ou prestar atenção. Às vezes é óbvio que algum elemento será reutilizado novamente no longa, pois há uma fala negritando aquilo e um close no fato que se deve prestar atenção, parece haver um medo por parte do cineasta de que o público não capte todas suas mensagens.
É verdade que o didatismo pode ser incômodo, mas deve ser levado em conta que é prazerosa essa relação habilidosa entre pistas e recompensas propostas pelo longa, algo que agrega completamente a concisão presente em Corra!, algo essencial num filme de terror. No longa, há sempre uma tensão presente, algo que começa pequeno e vai crescendo, apresentando um terror iminente, que finalmente explode no final. Logo no começo da narrativa, quando os dois protagonistas estão tendo uma conversa banal durante uma viagem de carro, um cervo é atropelado, um pequeno momento de tensão nos minutos iniciais, premeditando o que acontecerá em breve. A figura do cervo não é gratuita, Chris cria uma espécie de empatia com o animal, close nos olhos das duas figuras, do homem e do animal, o didatismo de Peele deixa claro que ali está estabelecida a metáfora. O cervo voltará na trama novamente, o pai de Rose diz que aqueles animais são pragas, que quando mortos ele comemora, Chris é tão praga quanto o cervo, Chris e o animal são carne de caça naquele local, são figuras com morte certa para serem colocadas empalhadas em alguma casa de algum homem rico – essa imagem será recorrente durante toda a projeção.
Não há ponto sem nó, como já dito anteriormente, num filme sobre o racismo, não há gratuidade quando um personagem faz uma contagem através do clássico “one Mississipi”, a alusão ao racismo sulista sempre presente é marcante e surge na tela como se fosse um detalhe. Nem mesmo a música dos créditos iniciais, a envolvente Redbone de Childish Gambino, está ali sem alguma motivação, na letra cantada com vigor é dito algo como, permaneça acordado, vão te pegar enquanto você dorme, negros estão rastejando, agora não feche os olhos. Jordam Peele faz uma obra que essa ameaça está presente no início ao fim, e esses elementos vão ficando mais fortes à medida que o filme avança. Um longa que torna a concisão de seus temas e formas aterrorizante.
Esse terror tem um duplo incômodo, o primeiro por sempre propor a conexão com a problemática real do racismo e a segunda pela manipulação emocional muito bem feita. Fato é que em Corra! essas duas dimensões sempre estão unidas, como se a tensão construída cinematograficamente trouxesse embutida a sua questão racial. Na sequência inicial um homem negro caminha por um bairro do subúrbio americano, ele está com medo, ele fala consigo mesmo, dizendo que ali é um lugar perigoso para ele, no fundo do quadro surge um carro, que se aproxima devagar, a trilha começa, ele fica mais assustado, do carro ouve-se uma cantiga macabra, ele finalmente é raptado. A inteligência está justamente aí, uma tensão muito bem construída aliada a um texto social muito marcante, o negro andando com medo pelo subúrbio americano, reduto de brancos e de segurança, confrontando a imagem do senso comum dos brancos andando com medo nos bairros perigosos povoados por negros.
Além da tensão e da inteligência do texto crítico, há essa ironia constante em Corra!. Um filme que se utiliza desse contexto para incomodar, para não ser um mero entretenimento, ou ainda um filme que propõe sua reflexão apenas nas entrelinhas. O terror é real e sem essa realidade o filme torna-se impossível. A obra inaugural de Jordam Peele capta perfeitamente como os temas devem ser abordados em 2017, o cineasta deve desde já ter seu nome gravado para futuras produções (ou para as antigas, suas esquetes estão disponíveis no YouTube), e Corra! torna-se, desde já, um dos filmes mais potentes do ano e um grande filme de terror.