Críticas

Crítica | Fala Comigo

Fala Comigo é um filme sobre repulsa, impulsos, desejos e disfunções, ou como tudo isso está presente em todos os momentos sempre por baixo dos panos. Empregados nos mais discretos momentos, o longa é uma tentativa constante de levantar essa poeira que costumeiramente é colocado abaixo do tapete. A tentativa é ambiciosa: fazer uma espécie de painel das neuroses atuais.

O filme inaugural de Felipe Sholl na direção se passa numa típica família de classe média brasileira, Clarice (Denise Fraga), uma terapeuta bem sucedida, vive com seu marido (Emílio de Mello) e seus dois filhos Diogo (Tom Karabachian) e uma garota mais nova, Mariana (Anita Ferraz). Logo de cara o propósito do longa é evidenciar as disfunções daquela família padrão e revelar esses segredos neuróticos (sejam eles provindos de amarras sociais, ou pela petrificação de tabus). Fala Comigo gira em torno, principalmente, das relações entre o adolescente Diogo e seus impulsos sexuais, seu problema, se é que podemos chamar assim, é sentir excitação pela voz das mulheres ao telefone, principalmente através dos números encontrados na agenda das pacientes da sua mãe.

Fato é que essas ligações conectam Diogo a outra personagem tão disfuncional quanto ele, Angela, interpretado por Karine Teles, uma mulher beirando os quarenta anos, que todas as noites aguarda pela volta do marido que a abandonara. Sholl leva a questão da composição de painel ao limite, como se no início do filme espalhasse informações, figuras e imagens para pouco a pouco constituir esse quebra-cabeça das relações humanas e suas neuroses. É como se o roteirista e diretor empregasse um zoom out narrativo, começando por mínimas partes daquela história para pouco a pouco mostrar as suas relações como um todo.

Esse artifício narrativo gera uma espécie de suspensão do espectador, como se este nunca tivesse todas as informações por completo, algo que gera imediatamente uma cooptação da audiência. Um sistema muito eficaz em que o longa oferece pequenas pistas, como se sempre faltasse alguma explicação que será revelada depois. Vale lembrar que Felipe Sholl pode estar estreando na direção mas como roteirista é um nome experiente, aparecendo em filmes como Campo Grande, de Sandra Kogut; Hoje, de Tata Amaral; Trinta, de Paulo Machline, entre outros títulos.

Assim, muitas virtudes de Fala Comigo estão totalmente ligadas ao texto do filme, principalmente pelo perspicaz desenho de personagens do longa. Nessa composição em que as grandes revelações vão aparecendo aos poucos, a cada sequência do filme mostra-se mais detalhes e características interessantes dessas figuras. Fala Comigo vai ao longo da projeção despindo seus personagens, mostrando suas neuroses, deixando-os cada vez mais particulares, logo muito mais humanos. Nesse sentido, o longa toma uma posição interessante de evidenciar que essas neuroses são totalmente comuns, estando presente em quase todas as pessoas. Não que o filme simplifique ou naturalize as neuroses, mas demonstra que por trás de cada um há uma considerada disfunção.

Assim, o surgimento dessas disfunções aparece com força, para romper com as convenções sociais. Os comportamentos outrora maquiados, aquela poeira que estava escondida debaixo do tapete, revelam-se e vem à tona. Uma espécie de histeria toma conta do filme e aqueles laços parecem estar à beira de ruir. É o pai que não aguenta mais o silêncio e a incomunicabilidade familiar, a mulher que não sabe lidar com sua solidão, a filha pré-adolescente que já dá indícios de hipocondria, o garoto que não sabe lidar com os impulsos sexuais reprimidos, um amigo do protagonista que lida com seu desejo homossexual como “só zuação” e a matriarca terapeuta impossibilitada de resolver seus próprios problemas internos.

Esse quadro completamente neurótico faz com que a segunda parte de Fala Comigo seja marcada pelo tensionamento dessas ralações, como se fosse filmado a ruptura daquelas convenções sociais que mascaram impulsos e desejos. Ainda que Felipe Sholl construa uma mise-en-scène bastante comportada, fazendo o máximo para que não chame atenção para si mesma, o cineasta cria um incômodo constante, como se seus personagens e suas situações fossem de completo constrangimento diante dos olhos voyeurísticos dos espectadores. Essas revelações incômodas estão presente nos mais banais momentos do longa, num simples jantar silencioso na casa da família, nos beijos desconcertados entre o garoto e aquela sensível paciente de sua mãe, num diálogo entre o protagonista e seu amigo visivelmente atraído por ele. Esses incômodos vão ficando cada vez mais tensos, como se o filme estivesse prestes a ruir todas as relações.

Com isso, o filme tem dois pontos que possam ser interpretados como caminhos no mínimo perigosos. A primeira reside nesse constante incômodo, como se as relações presentes no filme estivessem sempre sendo julgadas, nunca partindo de uma genuína vontade de se relacionar. As interações humanas partem mais das disfunções do que dos afetos. Dessa maneira, é como se não houvesse um contraponto naquele quadro composto por Sholl, mas apenas relações que partem das suas neuroses sem que isso pareça verdadeiro, ou até mesmo comum. O incômodo perene da obra afasta certa empatia com aqueles seres, se são próximos ao espectador por revelar suas neuroses, também estão afastados por serem colocados a todo momento como pessoas a esconder esses desejos, como se estivessem praticando algo completamente errado, como se não assumissem aquilo que são e assim assumirem suas verdadeiras relações.

Muito disso se deve ao segundo ponto, esses pontos de tensionamento que são radicalizados com o decorrer do filme são tão fortes e potentes que parece implodir a própria obra. Em Fala Comigo essas neuroses são levadas a um nível parcial de histeria, parece que quando todos os laços vão de fatos de serem rompidos, e que os impulsos finalmente quebrariam todas as convenções sociais, o filme interrompe seu clímax, freia aquilo que era proposto. E talvez isso deva ser levada em conta, pois alguns importantes títulos nacionais operam da mesma maneira, caso de Aquarius (2016) e Joaquim (2017), filmes que, juntamente com Fala Comigo, revelam uma ruptura em relação a seu clímax, como se a histeria fosse freada para que um grande conflito não seja filmado.

O que parece é que o longa deixa, dessa maneira, a sua própria neurose escondida. Diferente das melhores obras histéricas do cinema brasileiro, como os melhores filmes de Ana Carolina (Mar de Rosas, 1978, por exemplo) e os primeiros de Sérgio Bianchi (Maldita Coincidência, 1979), Fala Comigo mostra que tem um limite para mexer no vespeiro dos comportamentos da classe média brasileira, apenas revelando seus traumas e neuroses, mas não escancarando de vez as disfunções sempre mascaradas. O que não pode ser negado é que Fala Comigo faz um instigante painel das neuroses desse grupo social.

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