Críticas

Crítica | Lady Bird: A Hora de Voar

Lady Bird: A Hora de Voar tem uma qualidade muito rara, a honestidade, algo que praticamente todo cineasta deseja ao realizar um filme e a estrela Greta Gerwig consegue em seu primeiro trabalho como diretora. Um filme honesto não significa que há uma exposição de fatos internos, ou uma característica autobiográfica, até pode ter, mas essa honestidade provém de uma entrega da alma naquela obra, um cuidado e um afeto em relação ao mundo e aos personagens que cria, realizando uma simbiose entre os aparatos técnicos e estéticos escolhidos com a narrativa e os temas desenvolvidos.

O filme acompanha ‘Lady Bird’ McPherson durante seu último ano de colegial, mostrando seus romances, suas aventuras, certa rebeldia controlada e seu principal objetivo, finalmente sair de sua cidade, a pequena Sacramento. Essa pode parecer a típica narrativa de passagem, o famigerado comming of age, e até pode ser mesmo, mas a honestidade está aí também, conseguindo colocar importância e particularidade naquilo que já foi reproduzido tantas vezes e de tantas formas. Greta Gerwig consegue fazer seu específico retrato da juventude, e consegue alcançar emoções muito fortes, como ternura, pertencimento e melancolia sem precisar apelar para as referências de obras que já conseguiram fazer isso.

Essa opção faz com que o filme assuma com toda força o que ele realmente é, algo que faz as indicações do longa no Oscar soarem até estranhas, mas não injustas, o que acontece é que aqui não há uma busca por estilos e por provações que colocariam aspectos x ou y em destaques em comparação a outros títulos. Lady Bird: A Hora de Voar é apenas isto, ou tudo isso. A obra é um filme dos pequenos momentos, de dar importância aos pequenos dramas e como eles afetam os indivíduos em si, é sobre a importância do crescimento (e como isso pode doer), e principalmente sobre a aceitação daquilo que te constitui.

Como o próprio filme diz, há sofrimento além da guerra, e se as urgências sociais pautam os indicados ao Oscar (e que bom que pautam), há espaço também para um outro tipo de drama, e um não deve ser mais importante que o outro, mas deve mover o universo ficcional em questão e aqui a Lady Bird é realmente questionada e age de acordo com todas essas questões. Essa relação direta na forma como o filme trabalha os problemas de sua personagem promove um aprofundamento naquela figura, não julgando suas motivações ou ações, apenas compreendendo como é aquela figura, como é aquela fase da vida e como foi/é uma geração.

Esse contato faz com que a protagonista e aquilo que ela passa se tornem extremamente próximas e semelhantes ao público, um filme que traz esse ponto de sempre parecer com aquilo que todo mundo um dia já viveu, e fazer isso de forma espontânea, não apelando para clichês é uma tarefa um tanto quanto difícil. Lady Bird: A Hora de Voar é um filme que alcança isso através do despojamento, algo típico no chamado indie americano, e este título é um exemplar deste estilo, mas que aqui funciona de forma eficiente, realmente limpando o retrato daquela garota.

A câmera próxima, fluída, sem maneirismos em seus movimentos faz um retrato da simplicidade, de uma vida comum, de uma cidade que aparece sem vida. A montagem rápida, afeita aos jump cuts (cortes que não respeitam uma linearidade cênica, promovendo pequenos saltos temporais), evidenciam essa menina que está sempre em efervescência, sempre pensando em seu próximo passo, naquilo que ela quer ser. E isso confere ao filme uma proximidade invejável, expressando os pensamentos de uma garota que quer sempre mais e se vê num lugar que parece não pertencer a ela. Lady Bird: A Hora de Voar é um filme sobre desajustados, e como algumas pessoas tem o dom em assumir seus desajustes como se fossem uma qualidade, um brilho que só pode ser descoberto em alguma cidade grande como Nova Iorque.

Assim, Lady Bird é repleta de peculiaridades, assim como tudo aquilo que o cerca, desde sua família, amigos, escola e locais que passa. O longa importa-se com cada detalhe que apresenta, e isso demonstra um grande afeto, uma grande importância naquele universo ficcional, outra grande característica da honestidade. Ainda assim, tudo ali aparenta ser um tanto quanto disfuncional, fugindo do padrão, das figuras prontas que sempre aprecem num filme sobre o colegial, há sempre algo que faz com que aqueles personagens sejam extremamente interessantes, até mesmo a patricinha demonstra algo a mais, quando ela reflete porque acha melhor ficar em Sacramento, ou até mesmo lidando com seu dinheiro. Sem contar com o irmão de Lady Bird, um mexicano adotado e essas duas questões não são abordadas claramente no longa, apenas constituem a particularidade daquele personagem.

Isso faz com que o filme até mesmo consiga desenvolver os pequenos dramas de todos aquele núcleo envolto de Lady Bird, seu irmão e a procura de emprego, seu pai e a melancolia silenciosa, sua amiga e os relacionamentos conturbados de sua mãe, a sexualidade de seu namorado e assim por diante. E isso é colocado com tanto cuidado no filme que diz muito sobre a própria personagem. Lady Bird: A Hora de Voar faz com que a inquietação e o desajuste da protagonista soem como qualidades, pois ela é fruto dessa ambiente de afeto, desse universo preocupado com todos esses pequenos detalhes. Aquela garota é Lady Bird por ser um acúmulo dessas particularidades, por ser de Sacramento e tudo aquilo que ela tenha vivenciado por ali. Quando o filme dá importância a todos estes aspectos é a própria protagonista que se importa, constituindo aquela figura em amadurecimento em algo muito maior do que uma adolescente em crise.

Há um momento que isso fica bastante claro, quando a protagonista pergunta-se que tipo de coisa fará falta quando ela estiver fora de Sacramento, e imediatamente a câmera de Greta Gerwig dá um passeio pelos luminosos da cidade, planos e mais planos de pontos que nem mesmo passaram no filme, como se a resposta daquela pergunta já tivesse sido respondido na cabeça da personagem. Movimento que será repetido com força ainda maior no final do longa. Lady Bird: A Hora de Voar compreende muito bem esse movimento de amadurecimento, num fato de olhar para trás e perceber aquilo que torna Lady Bird tão única: sua cidade, seus amigos e sua mãe.

Seria justo falar do roteiro escrito pela própria Greta Gerwig, habilidade já comprovada em Frances Ha, que aqui mostra que esse despojamento estético pode sim estar ligado a um roteiro bem consciente e bem acertado, com diálogos marcantes e bem escrito que se comunica com o público e sempre diz muito a respeito daquele universo. Greta constrói um mundo extremamente coerente, um mundo bastante específico, e totalmente particular. É curioso até que o longa tenha momentos que almeje falar muito, soltar algumas frases que definam o filme, ou até como o longa demora a se despedir de sua protagonista.

Talvez este último ponto ocorra justamente pela forte conexão entre autor e a narrativa que se conta. Lady Bird: A Hora de Voar realmente consegue traçar um forte registro daquilo que deseja ser, e talvez nenhum filme dessa premiação tenha tamanha consciência daquilo que é. A simplicidade do longa faz de seu retratado e de sua trajetória algo extremamente próximo ao público, num daqueles filmes que com muito pouco diz muito sobre uma geração, seja lá qual for o problema que ela passa. Lady Bird: A Hora de Voar faz da honestidade sua maior qualidade e isso gera um afeto raro no cinema.

Escolha o Streaming e tenha acesso aos lançamentos, notícias e a nossas indicações do que assistir em cada um deles.