Críticas

Crítica | Maria Madalena

Dotados de narrativas camicases, os filmes bíblicos atravessam décadas replicando equívocos que atingem um patamar tão mítico quanto alguns de seus personagens. O expurgo às tentações terrenas, algumas tão insinuantes quanto suas objetificações ímpias, avançam rumo a lições de moral, que tem como usual gatilho a compaixão cristã, capaz de autodestruir qualquer enredo. Maria Madalena, de Garth Davis (Lion: Uma Jornada Para Casa, 2016) se esquiva dessas emboscadas, ao angariar espaço na chave da contemplação, fazendo desse seu mote.

Mesmo imbuída do cerne cristão, Maria Madalena (Rooney Mara) é vista como transtornada pela família, além de ser motivo de vergonha por recusar se casar com Efraim (Tsahi Halevi). Convictos de que ela está dominada pelo demônio, os familiares a interceptam para a realização de uma espécie de ritual semelhante a um batismo, mas de extrema violência, tanto física quanto simbólica. Em notável estado de apatia, ela não se recobra até a chegada de Jesus (Joaquin Phoenix), que a auxilia ao levar a palavra de Deus.

Uma terra onde a fé oprime não pode ser considerada um lar. Diante disso, Maria deixa a família para seguir como apóstola de Jesus, encontrando no caminho figuras como Pedro (Chiwetel Ejiofor) e Judas (Tahar Rahim), este último muito distante do rótulo de desleal que vem do livro sagrado, aqui provido de uma atitude resiliente, mas sem traços de rigidez.

Apesar de Rooney Mara demonstrar algum virtuosismo no papel, principalmente ao exibir a perplexidade de Maria Madalena diante do descabido convencimento da família de que ela está dominada por forças maléficas, o protagonismo feminino no filme pode ser contestado, por perder espaço em momentos como a crucificação de Jesus, que, sem dúvida, é um ponto altamente requerido dentro da história.

O público queixoso vai se afetar com as omissões da Bíblia, antes mesmo de compreender que a obra é um registro ficcional que não busca macular o Testamento, inquestionável para muitos. Aberto à alegoria, Maria Madalena é pomposo no encadeamento sensorial de suas paisagens, mostrando-se amplamente estonteante em sua abordagem física, tanto no que diz respeito às sensações dos personagens quanto à composição visual de seus planos.

O tom de sermão e de adoração cede lugar a um cinema contemplativo, que deve muito à profícua direção de fotografia do versátil Greig Fraser, haja vista a dimensão de seus trabalhos em Rogue One: Uma História Star Wars (2016) e no soturno Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo (2014). Aqui o anuviado se importuna com o júbilo, exultante diante de um panorama que remete à iluminação dos primeiros filmes de Terrence Malick, como Cinzas no Paraíso (1978), fotografado por Nestor Almendros, cercado de um aspecto tão inebriante que parece não reter nenhum nível de sensorialidade.

A vastidão dos planos destacam o competente retratista de paisagens que Fraser mostra ser, bem como a extensão da iluminação de algumas cenas, como a de Maria conduzindo o bastismo nas águas, de abrangência reluzente, em que a luz incide de modo tão veemente que eleva o filme a uma experiência etérea, criando assim uma metáfora de encontro com o divino.

Figura envolta em polêmicas, Maria Madalena foi tida como prostituta antes de ser guiada pelas leis de Deus, assim como foi considerada a primeira mensageira do Jesus ressuscitado. Diante de taxações tão divergentes, se o filme de Davis tem algum mérito é o de mostrar um pioneirismo intrínseco à construção do retrato dessa mulher, que se impôs perante à iniquidade de uma desvalida tradição cristã.

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