Independente da ideologia política que se possa ter, é sabido que a classe trabalhadora é explorada pela classe dos patrões – que muitos preferem chamar de burguesia – já há muitos séculos e do desejo da primeira se libertar da segunda. Porém esse desejo de liberdade, não raro, leva a confrontos entre as duas classes que, por sua vez, pode levar a extremismos e violência de ambas as partes como, infelizmente, estamos vendo atualmente em nosso país.
Célestine (Léa Seidoux, de Bastardos Inglórios) é uma jovem e bela camareira que já trabalhou nas casas das famílias mais ricas de Paris. Um dia, arruma um trabalho no interior da França na casa de uma família aristocrata local. Sua nova patroa, Madame Lanlaire (Clotilde Mollet, de O Fabuloso Destino de Amélie Pouilan), é uma matrona do pior tipo; e seu novo patrão, Monsieur Lanlaire (Hervé Pierre, de Adeus Minha Rainha), só pensa em levá-la para a cama. Conhece os outros empregados, dentre eles o taciturno Joseph (Vicent Lindon, de Tudo Por Ela).
Célestine é ambiciosa, não se conforma com seu destino em trabalhar para essa família em ambiente tão rústico, principalmente ao se lembrar de seu emprego anterior, no qual conviveu com uma amável família e chegou a ter um caso amoroso com um jovem membro dela com consequências trágicas. Ela procura manipular os que estão ao seu redor e acaba por relacionar-se com Joseph, que não só compartilha o seu inconformismo, como também faz parte de uma organização antissemita radical.
O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome de autoria de Octave Mirbeau (1848-1917) que já teve duas versões anteriores feitas pelo cineasta francês Jean Renoir (em 1946) e pelo cineasta espanhol Luis Buñuel (1964) e foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Berlim deste ano.
O diretor Benoit Jacquot (de 3 Corações), que também é o autor do roteiro juntamente com a atriz Hélène Zimmer (da série de TV Perfil Criminoso), baseou-se diretamente no romance ao invés das duas versões anteriores para chegar o mais próximo possível do texto original. Sua direção é correta, embora um pouco arrastada, com interessantes recursos de câmera de aproximações e afastamentos, porém peca na direção de atores – que falaremos mais à frente.
A produção é irretocável, com uma perfeita reconstituição de época da França do século XIX somada ao bonito figurino e à belíssima fotografia de Romain Widding (que já trabalhou com Jacquot em Adeus, Minha Rainha) das paisagens do interior da França na qual utilizou muito bem a luz natural.
O filme retrata bem as relações entre patrões e empregados. As cenas nas quais Madame Lanlaire usa sua sineta para chamar Celéstine mostra o desprezo que a classe dominante sente pela classe dominada, tratando esta quase como um animal. Da mesma forma, Monsieur Lanlaire e seu vizinho vêm suas empregadas de forma animalesca, apenas para a satisfação de seus instintos sexuais (uma situação que permanece nesta segunda década do século XXI). Apesar da decadência latente e óbvia, a burguesia não perde a pose.
Mesmo entre empregados, as relações são de dominação e submissão. Embora seja inteligente, sofisticada e manipuladora, Celéstine está disposta a submeter-se a condição de prostituta em um bordel por desejo de Joseph que, por ser a única alternativa da criada para mudar de vida, aproveita-se da situação para impor sua vontade.
A história passa-se na época em ocorreu o famoso Caso Dreyfus, no qual Albert Dreyfus, um oficial do exército francês de origem judaica, foi acusado falsamente de alta traição e condenado à prisão perpétua na tristemente célebre prisão Ilha do Diabo, localizada na Guiana Francesa. O caso gerou uma onda de xenofobia (ódio aos estrangeiros) e sentimento anti-judeu por todo o continente europeu. O filme acaba por fazer um paralelo com a atual situação da onda de imigrantes que buscam refúgio na Europa fugindo da situação de guerra de seus países de origem tais como Síria e Iraque, o que faz crescer movimentos e partidos políticos xenófobos tais como a Frente Nacional do político de extrema-direita francês Jean-Marie Le Pen e sua filha, a igualmente extremista Marine. Uma situação que já foi vista no filme Samba (veja aqui).
O elenco, principalmente Léa Seidoux, tem boas atuações. Entretanto, a direção de Jacquot faz com que esse mesmo elenco apresente-se de maneira fria, com pouca empatia com o público. Mesmo Célestine, com quem os espectadores poderiam se identificar, permanece numa situação de distância, apesar de ter bons momentos no filme.
Com todos os recursos que dispunha nesta produção (elenco, roteiro, etc.), Jacquot fez um filme um tanto indiferente, embora muito bonito. O final inconclusivo não contribui para melhorar, já que fica a dúvida sobre o que Célestine e Joseph irão fazer a seguir: realizar seus planos ou algo diferente? É óbvio que não haverá uma sequência para responder a estas perguntas, mesmo porque não há como fazê-la.
O Diário de Uma Camareira não chega a ser uma obra-prima, embora, como já foi dito, tenha um trabalho impecável de produção. Porém, apesar da frieza e indiferença mostrados, vale a pena assistir e não será uma perda de tempo.