Críticas

Crítica | O Estranho Que Nós Amamos

Sofia Coppola tem apenas 46 anos. É uma diretora de muita carreira pela frente ainda, por mais que seu nome já resida os cochichos da cinefilia desde 1999, quando lançou o psicodélico As Virgens Suicidas. De lá para cá foram mais 5 filmes, e nesse tempo é fato que as recepções de uns já tiveram algumas baixas, embora nenhum deles tenha sido unanimemente reprovado. E, por outro lado, é dela Encontros e Desencontros, belissimamente escrito e inegavelmente reconhecido.

Com este currículo, chegamos ao seu mais recente filme, O Estranho Que Nós Amamos, inspirado no romance de Thomas Cullinan, escrito em 1966. Conta-nos a história de uma escola para meninas no sul dos EUA que, durante a Guerra de Secessão, abandonada e isolada da sociedade (servindo, praticamente, como um refúgio da guerra para suas moradoras), resgata secretamente um soldado que lutava pelo Norte gravemente ferido e clamante por socorro. Disso surgirá uma erótica e atormentadora relação entre as mulheres adultas do convento e o “estranho”.

A primeira questão que me chamou a atenção no filme foi a leve saída de Coppola de alguns temas recorrentemente abordados na sua filmografia. Ela, filha de um diretor consagrado de Hollywood, teve a maioria dos seus filmes com o plano de fundo da elite ou alta classe média branca estadunidense – no caso de Um Lugar Qualquer, Bling Ring e Encontros e Desencontros tendo em vista justamente esse universo da fama midiática de Bervelly Hills -, denunciando em partes a futilidade e a personalidade massificada da juventude narcisista e vaidosa desse contexto, em partes o tédio e a solidão de um cotidiano repetitivo – e da resignação sobre este – e de relações pessoais frias pautadas por um jogo de egos típicos de uma elite irresponsável, mesquinha e vazia. No Estanho Que Nós Amamos não vemos isto, até mesmo porque o cenário seria totalmente impróprio para tanto.

O centro do longa é o jogo subjetivo de ódio, inveja e erotismo que atinge níveis psicodélicos enquanto é vivido pelo enigmático quadrado amoroso Nicole Kidman, Kirsten Dunst (a atriz que já protagonizou dois filmes da diretora), Elle Fanning (que já havia feito Um Lugar Qualquer com Sofia) e Colin Farrell – este último, o soldado resgatado. Em meio a um ambiente ultraconservador, em que a castidade dos modos ditos religiosos e as regras patriarcais do “bela e recatada” sob o comportamento feminino são impostas, a presença do soldado irá envolver a sexualidade das três mulheres protagonistas a tal ponto que atingiremos uma alucinada e macabra situação de psicodelia entre os quatro.

Coppola filma bem tudo isso, e sabe usar do visual do longa para ditar o tom da narrativa: um ambiente claustrofóbico, gótico e intimidador, cínica e belamente fotografado por Philippe Le Sourd no melhor estilo “Gustave Courbet”. Coppola sabe também usar do silêncio para tornar a atmosfera mais atordoante ainda. O estilo estético do longa é agraciável.

Contudo, não creio que sua habilidade narrativa tenha, de fato, agradado a todos. E a recepção ambígua do longa no Festival de Cannes desse ano comprova minha hipótese: impressões positivas e mornas se revezaram – mesmo com o título de Melhor Direção que este levou da competição. O que tenha a dizer é que O Estranho Que Nós Amamos tem um desfecho muito bem realizado mas que, contudo, tem um desenvolvimento da história com alguns pontos não tão altos assim. É nítido que as mulheres do convento se sentem atraídas sexualmente pelo desconhecido, e que existe uma rixa entre elas para tê-lo. Mas talvez o roteiro tenha ficado muito tempo, repetitivamente, estagnado neste ponto já muito bem estabelecido na trama e que, por assim ser feito, não desenvolve a história mas a estagna em um ponto de tal forma que desperdiça parte do decorrer de O Estranho Que Nós Amamos.

A intenção do roteiro era a de, gradualmente, transitar da sobriedade inicial em que se encontravam aquela comunidade de mulheres para a alucinação viciante e doentia – a ponto deste efeito alucinógeno ser sentido pelo público. Esta passagem se realiza, e o clímax é muito bem realizado tendo em vista esse desfecho. Contudo, parte do miolo da história não consegue justificar esta transição, fazendo com que lá pela metade do filme este perca um pouco do seu significado: a exploração e o estabelecimento, na narrativa, do sentimento de culpa e medo, da relação entre a castidade e a vivência do prazer carnal que marcam esta psique humana levada a um estado de irracionalidade e delírio – que é retratada no filme – lá pela metade da obra acaba soando sem muita verossimilhança e redundante.

Contudo, as atuações excêntricas e macabras do trio feminino é um fator bem positivo para o filme. Elas traduzem, com seu sinistrismo e agouro, o estado perturbado de suas personagens, o que faz com que, junto a já elogiada fotografia, o cinismo claustrofóbico desejado por Sofia Coppola seja transmitido em O Estranho Que Nós Amamos. A dualidade entre o puritanismo e a sede carnal erótica, somada à guerra de fundo, leva ao caráter de limite da racionalidade o qual Coppola parece querer para caracterizar a sua história. O clímax, repetindo apenas, é o qual redime o filme. Nele se estabelece melhor o sentido por trás do estado doentio que é atingido – diferentemente da parte na qual a gradação da sobriedade à alucinação permanece truncada e de razões pouco evidenciadas pelo roteiro – além de ser bem mais enfaticamente e contagiosamente trabalhado pela diretora. Para tanto, uma peripécia muito bem aproveitada da obra original de Cullinan é fundamental.

E, no fim das contas, O Estranho Que Nós Amamos faz prevalecer seus pontos positivos. Para um filme que dividiu opiniões, talvez a minha seja adepta – porém não tanto como a de outras revisões. Contudo, além de ressaltar que gosto bastante de seus filmes, é mais importante ainda ressaltar que inegavelmente alguns aspectos da direção de Coppola sejam incrivelmente invejáveis neste daqui – é só ver o visual da película. De qualquer forma, a pretensão de fazer um jogo que leva o espectador a se afundar em estado de psicodelia é transformada em um resultado final instigante, de eco perturbador. É, no mínimo, um feito bem interessante este atingido pela diretora ítalo-estadunidense, que já fez belos filmes para a história do cinema.

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