O trabalhador sempre foi uma figura muito cara ao cinema brasileiro, desde sua aparição constante no Cinema Novo e dali em diante, fazendo parte fundamental da cinematografia nacional. A produção atual parece se concentrar mais uma vez nessa figura, analisar sob uma ótica contemporânea e dos novos rearranjos sociais os aspectos que rondam esse corpo operário. O operariado surge com força em filmes que receberam no ano passado atenção especial dos festivais internacionais e há pouco tempo começam a chegar aos circuitos comerciais, é o caso de Corpo Elétrico, Arábia (a estrear) e a estreia em questão, o debute de Caroline Leone na direção com Pela Janela.
Esses três filmes em particular compartilham uma relação fundamental entre o tempo dedicado ao trabalho e o que é feito longe dele, ou como as duas coisas nunca se separam. O recorte de Pela Janela é específico e preciso, contando essa configuração operária atual através dos olhos de uma sexagenária, que há muito vive entre a arrumação de sua casa e a vida fabril, quando de repente vê tudo isso mudar e atingi-la com uma força abrupta. O retrato aqui é das mãos já calejadas pelo ato imparável de apertar parafusos, de manejar chapas de aços e de se deparar com fios desencapados. Corpo que revela não somente esses calos, mas também as rugas de um outro tempo e de um outro modo de se relacionar com o trabalho e com sua rotina.
Quando Rosália (Magali Biff) após muito tempo no comando da produção se vê demitida, seu mundo realmente desaba, aquilo que preenchia seu tempo, seus afazeres e seus pensamentos, de uma hora para outra, não existe mais. A protagonista e seu desespero é o fruto de uma mudança em voga, que ocupa não somente o discurso oficial e suas diversas reformas, como também o senso comum, algo bem apresentado em duas pequenas cenas, quando há o comunicado que a fábrica está se fundindo e com novos sócios vêm novas regras e conceitos, e quando o novo chefe da produção recebe o conselho de não ser como Rosália, tão conectada aos outros funcionários. Práticas de uma nova mentalidade trabalhista, que afasta práticas feitas pela protagonista do filme, que conectava toda sua personalidade com aquilo que fazia em suas oito horas de jornada.
Ao ver tudo isso mudar, seu irmão José (Cacá Amaral), que vive com a protagonista, decide levá-la a um trabalho que ele deve realizar, entregar um carro em Buenos Aires, uma proposta de sair daquela rotina tão presente após tanto tempo. Num primeiro momento a câmera de Caroline faz questão de participar desse padrão, de se estabelecer num lugar da casa daqueles dois e apenas observar o que aquela mulher faz após o expediente. Ecos de Chantal Akerman e seu Jeanne Dielman se fazem presentes, nesse ritmo repetitivo, nesse eterno movimento de abrir as janelas após um longo dia fora de casa. A pergunta que fica é realmente o que fazer agora com esse tempo livre, com esse momento onde não existe mais aquilo que define Rosália, aquilo que a preenche.
A resposta está justamente nessa viagem, Caroline Leone é bem atenta a esse fiapo narrativo, ainda que Pela Janela seja um filme muito mais preocupado em levantar essa sensação entre o corpo de sua protagonista e o tempo que ela redescobre, um objetivo não encontrado nas linhas do roteiro, mas sim nas opções estéticas do longa. Dessa forma, a obra torna-se um road movie no sentido mais literal da palavra, com a estrada e esse movimento estarem sempre presentes na tela. O tempo, que agora Rosália ganha, é sentido. E aquela velha máxima que nada está acontecendo mais uma vez se demonstra mentirosa. Há nesse fluxo de movimentações um sentimento de que a rotina está em transformação, assim como aquela senhora.
Assim, Pela Janela é um filme do tempo, que necessariamente faz com que o espectador sinta esse peso temporal, sobre o ócio que agora se faz presente, mesmo numa viagem entre São Paulo e Buenos Aires. Com a câmera colada a Magali e sua perspectiva, o que se vê é essa mulher mais velha tomando consciência de si própria, de uma personalidade que pode não estar atrelada ao trabalho. Realmente é impressionante a atuação de Biff, a sutileza dessa mulher em mutação, que aqui não vai passar por uma grande virada, mas entender essa simples transformação, esse reconhecimento de si próprio, ainda que seja tardio. Com poucas falas, e nenhuma delas sendo explicativas, a atriz fica nesse misto de preocupação, de incertezas e deleite, tudo isso representados em pequenos atos, no simples cantar de uma canção, em ensinar um ponto de bordado ou na compra de uma panela. Esse microcosmos da mudança é impresso no rosto já envelhecido de Magali Biff.
Tanto a atriz quanto a direção do longa são muito afetivas com a personagem principal. O filme celebra cada descoberta de Rosália, por menor que ela pode ser. Sem exageros ou maneirismos, existe em Pela Janela a sutileza dessa relação entre aquela senhora e as coisas que estão a sua volta. Como pequenos fatos ocorrem e sem alarde tiram um sorriso daquela mulher, promovendo uma faísca nessa trajetória de descoberta, de acompanhar a bela simplicidade de um tempo livre. Algo que gera uma belíssima sequência desse cinema nacional recente, quando Rosália se permite ser banhada pelas Cataratas do Iguaçu, e a câmera passeia pelo corpo da atriz por esse deleite em perceber que aquela força arrebatadora pode muito bem trazer um novo modo que Rosália não esperava, mas que traz uma nova articulação entre seu tempo e seu próprio eu.
É curioso notar como essa libertação de uma rotina rígida se dá através do trabalho de seu ente mais próximo, como se ainda a presença do trabalho fosse algo extremamente marcante nas interações sociais. Pela Janela então escreve mais um capítulo nesse cinema tão preocupado com o corpo e alma do trabalhador, um capítulo muito singelo, muito afetivo e atencioso com essa protagonista que representa tanto essa transição na compreensão do trabalho, revelando que a dissociação entre a vida particular e operária pode ser uma bela descoberta.