A banda de Rock Progressivo Pink Floyd surgiu na Inglaterra, em 1965, no cenário Underground da “Swinging London” (“Londres dançante”, em tradução livre), fundada pelos estudantes Bob Klose (que sairia pouco depois), Nick Mason, Rick Wright, Roger Waters e Syd Barret – conhecido como “o estranho Syd”. Tendo Barret como seu principal compositor, seu primeiro disco, The Piper at The Gates of Down, foi lançado em 1967, fez grande sucesso e mostrou ao público o seu estilo musical: sons e ritmos estranhos, letras que falavam de fascinantes acontecimentos e viagens luminosas.
Entretanto, embora estivesse fazendo sucesso, o grupo enfrentava sua primeira grande crise: Syd Barret, o estranho Syd, afundava-se cada vez mais no uso de drogas, principalmente LSD. Syd ficava shows inteiros tocando apenas um acorde e chegou ao ponto de aprisionar a namorada durante uma semana dando a ela apenas água e bolachas para se alimentar. Ele ainda participou das gravações do segundo disco do grupo, mas, devido ao seu estado que não parava de se deteriorar, acabou por sair da banda e foi substituído pelo guitarrista David Gilmour.
Syd Barret chegou a lançar dois álbuns solo, mas depois passou a se tratar em uma clínica psiquiátrica como paciente semi-interno (passava o dia na instituição e dormia em casa), onde ficou pelo resto de sua vida até falecer, em 2006, de causas ainda não muito bem esclarecidas (não se sabe se a causa da morte foi a diabetes ou o câncer).
A partir da saída de Barret, Roger Waters passou a ser o principal compositor do Pink Floyd e o grupo seguiu em frente. A popularidade da banda aumentava e, em 1969, começou a sua íntima relação com o cinema: a realização da trilha sonora do filme More, dirigido pelo diretor francês Barbet Schroeder (de Barfly – Condenados pelo Vício). No ano seguinte, contribuíram para a trilha sonora do filme Zabriskie Point, dirigido pelo italiano Michelangelo Antonioni (Blow Up – Depois Daquele Beijo).
Também em 1970, Waters realizou seu primeiro trabalho solo ao compor, juntamente com o músico Ron Geesin, a trilha sonora do filme The Body, um fascinante documentário sobre o corpo humano narrado pela atriz inglesa Vanessa Redgrave (Missão Impossível) e dirigido pelo inglês Roy Battersby (Red Mercury).
Em 1972, houve mais dois filmes para o cinema: La Vallé, outro filme de Schroeder, para qual também compuseram a trilha sonora, que seria lançada em seu álbum Obscured By Clouds; e Pink Foyd: Live at Pompeii, dirigido pelo documentarista belga Adrian Maben (Helmut Newton: Frames From The Edge), no qual a banda montou toda a sua estrutura para um show ao vivo nas ruínas da histórica cidade de Pompéia, mas tocou para uma plateia vazia – uma esquisitice considerada “normal” na década de 1970. Maben também registrou as sessões de gravação do álbum Dark Side of The Moon, que seria lançado no ano seguinte e se tornaria uma das obras-primas do Pink Floyd e do próprio Rock. É, Syd, você perdeu…
Em 1975 e 1977, respectivamente, foram lançados os álbuns Wish You Were Here (uma homenagem a Syd Barret) e Animals. Nessa época, o Pink Floyd era criticado pelo emergente Movimento Punk que acusava o grupo de ser “careta e pretensioso”. Em 1979, veio aquele que é considerado a obra-prima da banda ao lado de Dark Side of The Moon: o álbum conceitual The Wall.
Com quase todas as músicas compostas por Roger Waters, The Wall trata de temas como abandono, solidão e isolamento. Conta a história de Pink, personagem baseado em Waters, cujo pai faleceu durante a Segunda Guerra Mundial. Ele é oprimido pela mãe superprotetora e, na escola, sofre com seus professores abusivos e tirânicos. Esses traumas se tornam tijolos no muro emocional que ele constrói em torno de si mesmo. Adulto, torna-se um astro de Rock, com uso constante de drogas e explosões súbitas de violência (uma clara referência a Syd Barret). Seu casamento é marcado pela infidelidade e, ao terminar, Pink finalmente finaliza a construção de seu muro e isola-se por completo da humanidade.
Atrás de seu muro, a crise de Pink aumenta e, em pleno delírio, acredita ser um ditador nazi-fascista. Seu sentimento de culpa faz com que ele coloque a si mesmo em julgamento e seu “juiz” interior o sentencia a derrubar esse muro que o separa das pessoas. Então, o muro é derrubado.
O álbum foi um sucesso absoluto e foi adaptado para o cinema, em 1982, com o nome de Pink Floyd – The Wall. O roteiro era de Waters e a direção ficou a cargo de Alan Parker (Mississipi Em Chamas). O rockeiro Bob Geldof, da banda The Boomtown Rats e idealizador dos megaconcertos de caridade Live Aid e Live 8, fazia o papel de Pink e ainda havia a participação de Bob Hoskins (Uma Cilada para Roger Rabbit) como um empresário musical. Misturando cenas de live action com animação, o filme foi bem recebido pela crítica, fez sucesso e conquistou dois prêmios BAFTA, o Oscar britânico: melhor canção (para Another Brick in The Wall – Part 2) e melhor som.
Em 1983, o Pink Floyd se separou. Waters lançou mais três álbuns solos e, em 1990, organizou o histórico concerto The Wall Live in Berlin, na capital alemã um ano após a reunificação do país. Nesse concerto gigantesco, onde compareceram 350.000 pessoas e que reproduzia na íntegra o álbum homônimo, à medida que o espetáculo corria, um muro ia sendo construído e, ao final, caía. Além de Waters, estiveram presentes astros do calibre de Scorpions, Cindy Lauper, The Band, Sinéad O’Connor, Joni Mitchell, Bryan Adams, Van Morrison, Marianne Faithfull, Thomas Dolby além dos atores Tim Curry e Albert Finney e da Orquestra Sinfônica da Rádio de Berlim. O concerto foi lançado em vídeo nesse mesmo ano com direção de Waters e do documentarista Ken O’Neill.
Roger Waters: The Wall foi lançado oficialmente no Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em 2014. O filme é o registro da turnê The Wall Live, que percorreu vários países – inclusive o Brasil – entre os anos de 2010 e 2013 que, assim como no concerto de Berlim, reproduzia na íntegra o álbum do Pink Floyd. Também como na capital da Alemanha, à medida que o espetáculo corre, um muro vai sendo construído até separar completamente Waters e os músicos que o acompanham do público para, ao final do espetáculo, cair solenemente.
O filme começa com um monólogo do ator irlandês Liam Neeson (Michael Collins), que conta que, algum tempo depois de chegar na Inglaterra, no início da década de 1980, foi com sua namorada assistir ao show do Pink Floyd que apresentava o então novo álbum The Wall. Neeson conta também do impacto que sentiu ao assistir o espetáculo como um imigrante recém-chegado a Londres e que sentia-se como a personagem principal do álbum: separado das pessoas por um muro emocional.
Logo a seguir, vemos Waters em um cemitério militar. Ele abre uma mala, da qual tira um trompete e toca uma música fúnebre. Em seguida, vem o show propriamente dito em que são apresentadas as músicas do famoso álbum. As cenas do show se revezam com a de uma viagem de carro que Waters até a Itália e, durante essa viagem, conversa com seus filhos, amigos e desconhecidos.
Após os créditos finais, vemos ainda Waters juntamente com o bem humorado baterista do Pink Floyd, Nick Mason, responderem a perguntas dos fãs feitas pela internet, sendo que algumas são sem pé nem cabeça, o que arranca gargalhadas da plateia e faz com que o filme termine em um clima descontraído.
A direção e o roteiro são de autoria do próprio Waters e do diretor e roteirista estreante Sean Evans. Todas as experiências adquiridas por Waters em anos de estúdios, palcos e realizações de filmes somados ao entusiasmo do novo diretor podem ser vistos no filme que capta toda a grandiosidade e vibração do espetáculo tanto em closes como em planos gerais, o que inclui cenas do palco por trás do muro. Tudo feito com muita competência. E essa mesma competência também aparece nas cenas mais intimistas da viagem de carro de Waters.
A fotografia de Brett Turnbull (Cirque de Soleil: Outros Mundos) é esplendorosa ao mostrar os efeitos especiais top de linha desta segunda década do século XXI juntamente com as cenas de animação do filme de 1982 que, até os dias de hoje, fazem a cabeça de muita gente, além das belas paisagens do interior da Inglaterra, França e Itália.
Quanto à trilha sonora, bem, acho que não é preciso falar, não é? Entretanto, é digno de nota dizer que a banda que acompanha Waters é de primeiríssima linha, reproduzindo fielmente o som do clássico álbum do Pink Floyd. Vale dizer também que, mesmo não tendo o mesmo prestígio de um Paul McCartney (The Beatles) ou de um Steve Harris (Iron Maiden), Roger Waters é, sem dúvida, um dos grandes baixistas do Rock.
Engana-se quem pensa que Roger Waters: The Wall é um mero registro de um show ao vivo ou até mesmo uma mera cópia de The Wall Live in Berlin, embora em ambos haja o já citado muro. Longe disso, mesmo porque os momentos são muito diferentes. É preciso lembrar que o concerto na Alemanha foi realizado um ano após a queda do muro de Berlim, um dos símbolos da Guerra Fria entre EUA e União Soviética (URSS). A queda do muro de Waters, representando tanto o fim do isolamento de Pink quanto da divisão de um país, foi de um impacto fortíssimo nos corações e mentes das pessoas em todo o mundo daquela época.
Já nos concertos da turnê mundial, os muros a serem derrubados são outros. É o muro de um mundo no qual o ter é mais importante que o ser, e quem não tem, acaba isolado. É o muro de um mundo no qual a tecnologia tanto aproxima quanto afasta, que gera a solidão e, novamente, vem o isolamento. É um muro que isola aqueles que são considerados “diferentes”. Waters dedicou o show ao brasileiro Jean Charles de Menezes, morto por uma unidade especial da Scotland Yard, em 2005, por, supostamente, ter sido confundido com um terrorista. Foi morto por ser “diferente”.
O que pouca gente percebeu desde o seu lançamento, é que The Wall é, também, uma obra contra a guerra e isso se refere tanto à Segunda Guerra Mundial quanto aos conflitos atuais como, por exemplo, as guerras civis na Síria e no Iraque que geraram a atual crise dos refugiados na Europa e, igualmente, à casos de violência isolados. Ao longo do filme, Waters presta homenagens às vítimas desses casos e conflitos, que inclui o nome de mais dois brasileiros: o embaixador Sérgio Vieira de Melo (idolatrado pela chamada grande mídia brasileira) e o líder ecológico Chico Mendes (desprezado pela mesma).
Apesar de a Segunda Guerra Mundial ter acabado há 70 anos, Waters ainda procura exorcizar o fantasma da morte de seu pai ocorrida durante esse conflito. Esse processo iniciou-se justamente em The Wall e foi aprofundado em seu último trabalho com o Pink Floyd, o álbum The Final Cut (1983), que foi chamado por ele de “réquiem do pós-guerra” e para o qual foi feito um vídeo de curta-metragem com roteiro seu e dirigido pelo fotógrafo inglês Willie Christie.
No filme, vemos Waters iniciar uma viagem de sua casa, no interior da Inglaterra, passando pela França, com destino à Itália, onde seu pai está enterrado. Durante essa viagem para encontrar o seu passado e a si mesmo, expõe seus pensamentos e sentimentos para todos aqueles que ele encontra durante o trajeto, principalmente a seus três filhos Harry, India e Jack. Waters quer que eles, e o público dos shows e filme, entendam o que ele pensa e sente. Ao chegar ao seu destino, o cemitério militar na Itália, Waters novamente toca seu trompete e se emociona. É difícil não se emocionar também.
Syd Barret é também um fantasma que assombra Waters. A loucura de seu ex-companheiro de banda está explícita nessa obra e em outros álbuns do Pink Floyd, assim como em seu trabalho solo. A verdade é que Syd, na sanidade e na falta dela, teve uma grande influência sobre Roger e, durante todos esses anos, este luta para não esquecer e, simultaneamente, não ser tragado pela memória de seu amigo.
Por ter um pouco mais de duas horas de duração, Roger Waters: The Wall pode cansar um pouco, mas vale a pena assistir até o fim, pois este é um espetáculo único, mas com uma mensagem que atinge a todos. Neste mundo no qual muros são construídos todos os dias, em toda a parte, seja na fronteira entre Israel e palestina, nos países da União Europeia, nos bairro nobres das grandes cidades brasileiras (separando os “coxinhas” da população mais pobre), nas diferenças de opinião, origem, religião e gênero, é preciso que todos se levantem para derrubar esses mesmos muros que nos isolam tanto física quanto emocionalmente e tiram a nossa humanidade.