Críticas

Crítica | Um Limite Entre Nós

Certas opções estéticas e formais evidenciam de forma muito clara o objetivo de um longa. Um Limite Entre Nós é claramente um desses exemplos, muito apoiado no texto do dramaturgo August Wilson, o filme anseia por colocar todo seu conteúdo às claras durante seus 139 minutos, uma obra em que sua força reside muito mais nas palavras que são pronunciadas do que nas imagens que são construídas.

O longa claramente se insere numa espécie de movimento do grande cinema americano em escancarar as marcas do racismo nos EUA. Se nos anos anteriores o tema residia nos pequenos filmes independentes, hoje permeia o palco da maior premiação do cinema. Assim, o pensamento contido na realização de Denzel Washington, diretor, produtor e protagonista do longa, é claramente colocar seu conteúdo da forma mais objetiva na tela, Um Limite Entre Nós é por uma opção bem definida um grande teatro filmado.

A escolha não necessariamente coloca a obra em um patamar abaixo de outros filmes mais cinematográfico, mas cerca Um Limite Entre Nós de características muito específicas. O longa, dessa maneira, passa a ser um filme muito calcado na força de suas atuações, muito apoiado em como os conteúdos do texto são passados e a força de cada personagem.

Nesse sentido, Um Limite Entre Nós articula bem esses dois últimos pontos. O longa é uma obra que trabalha todo seu universo a partir de seu personagem principal. A figura de Troy, interpretado por Denzel, é um homem embrutecido pelo racismo, paralisado afetivamente por causa de um processo histórico que o marginalizou. É essa ferida aberta que pauta todos os relacionamentos do protagonista, e o filme é justamente sobre isso. Sobre essa conjuntura familiar que se desenvolve a partir de uma petrificação dos sentimentos. É curioso como o longa traz um personagem, o irmão de Troy, que após lutar na Guerra precisou colocar uma placa de metal na cabeça, algo que o deixou com sérias sequelas mentais, o protagonista é como o irmão, mas sua cicatriz não provém da guerra, mas sim da injustiça racial, e sua consequência não é mental, mas sim afetiva. Troy não se torna um sujeito atrativo, mas sim, um personagem totalmente coerente com o subtexto cultural que carrega consigo.

Assim, as interações entre esses personagens se dão sempre pelo reavivamento de fatos do passado que os marcaram. Como se aquelas cicatrizes fossem muito profundas para possibilitar algum afeto. Troy se manifesta assim com sua esposa, embora a reconheça como seu porto seguro; com seu filho mais velho, e no reconhecimento de sua falha quanto pai; com seu filho mais novo, e o desejo que o garoto não repita seus próprios erros, ainda que isso surja da maneira mais ríspida possível; e também com seu melhor amigo, Jim Bono (Stephen Henderson), que surge quase como uma voz da consciência de Troy.

O filme é estruturado em torno das atuações, de como essas interações surgem na tela. Troy é um personagem embrutecido, isso não ocorre na chave da incomunicabilidade, mas sim nas falas que são pronunciadas com violência, como quem impõe através das palavras. A partir dessa característica, Denzel Washington contém uma atuação herdada completamente da tradição teatral, tudo no filme é colocado através da imposição vocal do ator, como se realmente o intérprete estivesse num palco, sua visão de mundo é colocada através da entonação, da força nesse pronunciamento. Denzel, nessa obra, é um ator que não tem medo de usar sua voz no cinema e isso é extremamente impactante.

Diante dessa persona construída por ator e personagem a melhor resposta a Troy é com certeza a de sua esposa, Rose, interpretada pela grande Viola Davis (vencedora do Oscar de atriz coadjuvante pelo papel). Se Denzel impõe sua voz, se a força está na palavra, Viola Davis responde através do sentimento. A personagem de Rose sente cada frase que é ouvida, a atriz entrega-se emocionalmente. Através do gesto, das expressões e do choro que surge repentinamente nota-se os sentimentos daquela figura. Rose é uma mulher com as sensações à flor da pele e quando isso brota sem nenhuma repressão a estrela de Viola Davis brilha inevitavelmente.

Evidentemente que para esse filme funcionar completamente é necessário que todo elenco esteja em extrema sintonia e que toda resposta ao personagem principal seja a altura de sua atuação. E se Denzel Washington, Viola Davis e o veterano Stephen Henderson estão muito bem, é extremamente difícil manter esse grau de excelência. Em uma cena bastante forte, Troy tem um momento de ruptura com seu filho caçula, Cory (Jovan Adepo), em que tanto pai quanto filho manifestam da maneira mais violenta seu desejo em que um não se pareça com o outro. Nesse instante, Denzel mantém seu nível de atuação, enquanto Adepo não consegue balancear a cena. O experiente ator americano engole o garoto cenicamente falando, e um momento de extrema importância apenas não funciona.

Um Limite Entre Nós é um longa de muitos momentos com essa pretensa carga emocional. Se isso de fato acontece na maioria das vezes, há no filme uma certa atmosfera que revela a mão pesada de Denzel Washington, agora como diretor, em conduzir sua narrativa. O longa solta com seus inúmeros diálogo uma infinidade de sentimentos e assuntos que atingem seu espectador sem cessar. Quase não há respiro em Um Limite Entre Nós, o ritmo e a atmosfera estão sempre num grau de tensão tão elevados que se torna difícil para o público assimilar tantas emoções e tantos assuntos de uma só vez.

Isso está muito relacionado ao trabalho de adaptação realizado pelo próprio Wilson e por Denzel Washington. Há um desejo aparente de colocar tudo que está na peça para as telas, no pensamento da adaptação integral é sentida esse acúmulo de informações e sentimentos em um curto espaço de tempo. Isso torna o filme um tanto quanto maçante e pouco conciso, ainda que mantenha sua força.

Assim, Um Limite Entre Nós é um filme que cumpre com seus objetivos, que articula a adaptação do texto teatral para que ele continue sendo o centro de sua obra. E nesse percurso, que contém suas irregularidades, traz às telas grandes atuações, momentos extremamente potentes, que no final das contas transformam Um Limite Entre Nós num filme poderoso.

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