Críticas

Crítica|O Acampamento

Há alguns tons no degradê dentro do gênero do horror, desde assombrações até obras que focam num medo existente apenas no psicológico de um personagem. Entre fantasmas e paranoias, há o gore, um horror mais sádico, e o horror de situação. Nesses casos o que há nessas produções é uma prevalência da violência, algo que surge com uma força animalesca para romper com códigos morais e cíveis. Na maioria dos casos, esse horror está inserido num ambiente próximo a natureza selvagem, ou distante das grandes metrópoles, fazendo um estreito paralelo entre os impulsos naturais do homem e o ambiente animalesco. A ameaça é sempre humana.

O australiano O Acampamento é um típico exemplar desse subgênero, algo visto magistralmente em obras como Sob o Domínio do Medo, de Sam Peckinpah (1971) e Amargo Pesadelo, de John Boorman (1972), longas que levam essa configuração a um patamar único, e dois dos filmes mais amedrontadores já realizados, ainda que muitas vezes não sejam catalogados como horror. No caso do título da Austrália de 2016 que só chega aos cinemas brasileiros esse ano, a narrativa se passa por completo num camping – como sugere o título – em que um casal decide passar a virada do ano no sossego da natureza.

O longa narra paralelamente três histórias que cercam aquele local e sua aparente brutalidade. O espectador acompanha o casal protagonista e todos seus sentimentos até a chegada ao acampamento, onde sempre parece que eles possuem uma companhia, pelo óbvio fato de haver outra barraca no local. A partir daí, há essa divisão de narrativas, a câmera continua nos namorados e em seus respectivos atos, mas vai também para a família dona daquelas barracas e para a trajetória de dois amigos, habitantes locais com um passado extremamente perigoso.

O longa segue nesse ritmo de uma apreensão retirada de momentos bananais, onde a montagem intercalando linhas narrativas distintas faz com que a suspensão de informações deixem o espectador num sentimento aflitivo. Logo, nota-se a descontinuidade entre essas narrações, fatos aparecem ligados, mas não conectados num mesmo momento temporal. Uma estratégia funcional e que nunca almeja chamar atenção para si mesma. O Acampamento então faz com que o terror e o medo surjam de algo que nunca chega, que nunca evidentemente se materializa, ainda que tudo, principalmente a forma como aquela narrativa é proposta, insinue isso.

O terror retirado pelo roteirista e diretor Damien Power chega através do mínimo, tecendo relações interessantes entre o local, e um perigo próximo e imediato. O longa vai afirmando isso através de pequenas analogias em seu texto. Como o fato do local ter sido o ponto de um genocídio de nativos, explicitando a natureza historicamente violenta do local. Ou a relação daqueles visitantes e moradores com o espaço e os animais que vivem ali. Como os porcos e ratos da mata que roubam a comida dos visitantes, seres que se assustam e fogem para o meio da mata, tornando-se presas fáceis. Ou, por exemplo, o cachorro, utilizado para caçar esses dois animais pertencentes aos dois homens sombrios. A identificação do cão bravo se dá logo de início, de maneira provocativa e significativa. O protagonista pede informação a um homem, German (Aaron Pedersen), seu cachorro enjaulado esbraveja, rosna, o homem indica o acampamento para o visitante, mais tarde acompanharemos paralelamente a trajetória daqueles dois homens. Mas ali já está dada toda a ideia central daquela situação, a violência enjaulada, farejando e rosnando por animais de pequeno porte, que apenas podem fugir para o mato numa situação como essa.

O longa caminha assim até que finalmente as linhas narrativas se encontram, e O Acampamento indica seus principais problemas. Principalmente nas consequências daquilo que a obra cultivou ao longo de toda sua narrativa, a violência. O Acampamento parece não saber lidar com essa força que sua história possui. A violência cerca o filme em diversos pontos, e como filmar aquilo que é brutal é uma grande dificuldade. As narrativas se encontram e aquilo que era insinuado torna-se realidade. Cães de caça e presas se encontram, numa resultante que o massacre parece a única resposta. Sem informações narrativas propriamente ditas, o que está em jogo é o ato de filmar esse violência, que está sempre presente, mas vista apenas da metade para o final.

A grande questão é que se antes o ritmo do filme fluía entre planos curtos, que não estendiam a ação da cena, alternando entre as diversas linhas narrativas. Agora O Acampamento filma a barbárie em longos e fixos planos sequências, além da cena e suas respectivas ações possuírem um grande tempo de dilatação, essa alteração no componente da montagem do longa faz com que aquela violência passe pela crítica até chegar a um sadismo. Se obviamente o longa passa pelo objetivo de causar incômodo, a fita faz daquilo um culto ao choque, fazendo com que ele tenha seu fim em si mesmo.

Se em Sam Peckinpah a brutalidade ganhava uma resposta e uma encenação totalmente cinematográfica. Onde o sangue exagerado, a câmera lenta faziam um comentário sobre aquilo que estava sendo visto, jogando justamente com essa dualidade entre o que é ético ao ser filmado e o que é consumível, algo acentuado pelos aparatos exclusivamente cinematográficos, consciente da encenação de uma realidade cruel que é reencenada. Aqui, a aproximação com o real e os longos minutos que espectador encara aquela violência faz com que O Acampamento ganhe contornos mórbidos, com certo peso da abjeção.

Algo existente em O Acampamento que surge totalmente do diálogo peckinpahniano é a força do mais fraco que surge do nada, numa resposta igualmente cinematográfica a violência que ele fora submetido. Aqui, há também um atraso nessa situação, O Acampamento não entrega facilmente essa virada, dificulta as coisas para o espectador. E o grande medo do filme passa a ser que a presa seja de fato uma presa, um ser humano sem condição de reagir, portanto fadado a morrer encurralado no mato. Sem nenhum heroísmo cinematográfico, apenas com covardia, o que resulta na melhor virada do longa.

O Acampamento é fruto de um pensamento acerca da violência e de suas consequências, um horror que surge desse maldito impulso humano, tão natural como qualquer queda da água pronta para ser acampada. Se muitas vezes o longa acaba pecando na violência que aborda, o filme é totalmente capaz de transmitir o sentimento que deseja, o medo absoluto perante a violência humana.

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