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Crítica | Bohemian Rhapsody

Em uma das cenas de Bohemian Rhapsody, filme sobre a ascensão de Freddie Mercury e a banda Queen, o lendário vocalista bate boca com um produtor musical acerca da faixa icônica que dá nome à produção. O último duvida que a canção de seis minutos conquistará o público, e prefere que a banda se atenha a fórmulas pré-estabelecidas. Já Mercury e seus aliados tentam convencê-lo do oposto, de que a mistura experimental de rock e ópera será um hit, além de uma obra-prima. No fim, a audácia do grupo saiu vitoriosa.

Supondo que a mesma situação ocorreu durante o desenvolvimento de Bohemian Rhapsody, o filme, pode-se dizer que, desta vez, a vitória foi da fórmula. Mesmo que o resultado seja razoável, o que em si já é um alívio após uma pré-produção problemática, é um tanto contraditório que um artista visionário e sem medo de inovar ganhe uma cinebiografia acomodada. No entanto, aqueles que procuram por uma desculpa para escutar faixas de Queen estourando as caixas de som do cinema terão motivos para conferir o longa.

O maior deles é Rami Malek, que tem a tarefa complicada de encarnar Freddie Mercury, uma figura praticamente inimitável. Malek brilha em sua fisicalidade, replicando bem os trejeitos de Mercury e mostrando-se muito à vontade no palco. Quanto ao alcance vocal, o dote mais particular do artista, o ator teve sua própria voz mixada à de Mercury e outro cantor, e o resultado consegue ser bastante convincente em cena, sem soar como um mero playback. Só que Malek não está aqui apenas para se fantasiar, entregando uma interpretação nuançada.

Uma equipe técnica confiável também ajuda a construir um filme caprichado ao redor de uma figura central tão extravagante. Por vezes, o diretor de fotografia Newton Thomas Siegel consegue, através de esquemas cuidadosos de iluminação, evocar o semblante de Mercury e tornar Malek ainda mais parecido com o cantor – a semelhança é assombrosa em alguns momentos, como o da coletiva de imprensa. O montador John Ottman, por sua vez, realiza diversos cortes e transições inteligentes que deixam o longa mais dinâmico – um plano comum de uma galinha se torna hilário quando Ottman adianta o som da cena seguinte.

Outro destaque é a importância dada à sexualidade de Mercury, que Bohemian Rhapsody felizmente não deixa passar batido. Uma grande preocupação dos fãs ficava por conta da representação da vida sexual do artista, perigando ser abafada para atender a um público mais amplo. Porém, embora o filme mire em uma experiência mais amigável às famílias, é um ponto crucial para a história e que toma o tempo necessário em tela, sem omitir os beijos e carícias entre Freddie e outros homens – são poucos mas importantes para uma normatização.

De resto, Bohemian Rhapsody é um grande mais do mesmo, começando pelo roteiro burocrático de Anthony McCarten (A Teoria de Tudo). Vemos as origens da banda Queen, o sucesso, as brigas, o desmanche e depois a reunião triunfante a tempo do Live Aid em 1985, tudo da maneira mais esquemática. Durante a primeira metade, que retrata a ascensão de Mercury como artista e a descoberta gradual de sua sexualidade, o filme caminha bem, mas começa a desandar a partir da separação da banda, caindo em clichês e convenções típicos de cinebiografias.

Já as faixas musicais são, em sua maioria, incorporadas sem muita inspiração no decorrer do longa. Bohemian Rhapsody, é claro, tem o maior destaque, repetida diversas vezes ao longo do filme, enquanto Love of My Life ganha uma função narrativa, representando o laço de Mercury com sua antiga parceira Mary Austin (Lucy Boynton). Todas as outras, no entanto, ficam como trilha de fundo em cenas que refletem seus significados ligeiramente, dando a elas um ar didático. Ao menos, a mixagem de som para cinemas garante a melhor qualidade – as primeiras notas de Bohemian estão ainda mais arrepiantes.

Pena também que haja pouco insight no processo de criação das músicas. A produção da faixa titular é um pouco mais detalhada, rendendo uma sequência criativa com a banda experimentando diferentes sons – e novamente com John Ottman arrasando na montagem -, mas muitas outras são sequer mencionadas. Não espere, por exemplo, qualquer menção à maravilhosa trilha composta para Flash Gordon, sci-fi pulp de 1980. A aguardada sequência do Live Aid, por sua vez, apenas replica a conhecida performance, ancorada na entrega brilhante de Malek mas prejudicada por uma plateia CGI – bem falsa, por sinal.

Sem Rami Malek para representar a persona de Freddie Mercury e dar credibilidade às cenas de apresentação, Bohemian Rhapsody teria falhado miseravelmente em se destacar de tantas outras cinebiografias musicais. Se falta audácia ao texto de McCarten e até mesmo a direção, assumida por Dexter Fletcher após a demissão de Singer do projeto, Malek é plenamente capaz de nos lembrar do quanto botou em risco aceitando um papel delicado como esse, assim como Mercury se arriscou ao subir nos palcos com seu jeito escandaloso – em ambos os casos, são riscos que valeram a pena.

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