Filmes

Crítica | A Esposa

Mesmo com um currículo repleto de trabalhos fabulosos, Glenn Close até hoje não foi premiada com um Oscar, sendo que suas duas vitórias no Globo de Ouro vieram exclusivamente com trabalhos televisivos. Ao menos, a atriz continuou marcando presença em premiações ao longo dos anos por suas incursões cinematográficas, e desta vez foi recebida com alarde por seu trabalho em A Esposa, pequeno filme que orgulhosamente põe seu talento à frente e centro e que acaba de rendê-la seu primeiro Globo de Melhor Atriz em um trabalho para cinema.

Baseado no livro homônimo de Meg Wolitzer, A Esposa traz como protagonista Joan Castleman (Close), que deve acompanhar o marido Joe (Jonathan Pryce) à Suécia depois que este é escolhido para receber o Nobel de Literatura por obras mundialmente aclamadas. Assim que chegam à cidade de Estocolmo para os preparativos da cerimônia, a relação do casal é posta ao teste quando o escritor Nathaniel Bone (Christian Slater) questiona o passado dos dois e a verdadeira autoria das obras.

O simples ponto de partida, apresentado com leveza num descontraído momento de intimidade entre Joan e Joseph na cama, naturalmente torna-se uma história que se revela mais complicada, ganhando uma atmosfera de desconforto que eventualmente é justificada na narrativa. A relação do casal, aparentemente ideal, é destrinchada e ressignificada com a recorrência de flashbacks nos quais vemos os dois, ainda jovens (interpretados por Annie Starke, filha de Close, e Harry Lloyd), formando uma espécie de pacto que no fim custará a eles muito mais do que o esperado.

Para dissertar de forma concreta sobre o funcionamento da trama, alguns spoilers serão necessários, portanto recomendo a leitura após a ida ao cinema. A Esposa, na realidade, é uma história de grande violência, mas não aquela que se imagina. A violência e as agressões surgem aqui na forma das mentiras que Joan e Joseph contam a si mesmos ao longo de décadas, e a farsa que o casal sustenta – a de que Joe é o verdadeiro autor dos livros, e não Joan – tem seu efeito brutal sobre a esposa, que é deixada de molho e obrigada a ouvir seu marido dizendo coisas como “ainda bem que minha mulher não escreve” para outros homens celebrados.

O roteiro adaptado por Jane Anderson é eficiente em seu arranjo das cenas, viajando entre passado e presente, gradativamente reconstruindo esse quebra-cabeça para chegar aos pontos mais insidiosos dessa relação. Faz isso através de padrões e repetições, com momentos que rimam ao mesmo tempo que se contradizem. É incômodo ver como Joan e Joe pulam na cama comemorando o primeiro livro publicado – “NÓS seremos publicados”, dizem eles -, em contraste com os dois pulando em comemoração ao Nobel – “EU ganhei um Nobel”, diz Joe -, reforçando que, após tanto tempo, passaram a aceitar suas mentiras como verdade.

Nessa atmosfera apreensiva, Glenn Close assume com precisão o papel de uma mulher que, transformada em uma espectadora de sua própria vida e feitos, recobra suas ambições. O processo em questão é árduo, com Joan inicialmente na posição de observadora. Nesses momentos em que acompanha o marido, Close não está lá apenas de enfeite, já que o olhar da atriz, mesmo nos planos americanos e médios, cativa e alimenta pequenas dúvidas quanto à integridade daquilo tudo. São os primeiros sinais de que há muito mais ali do que se pode ver, e é um deleite ver a atriz operando com sugestões – o encontro de Joan com Bone no bar é o ápice disso.

Porém nem Joan, nem Close são deixadas para sempre nesta posição passiva, e o despertar da personagem permite que uma interpretação já bem consolidada alcance uma nova nota, muito como Charlotte Rampling havia feito no excelente 45 Anos, outro drama no qual uma esposa reavalia seu duradouro casamento sob circunstâncias delicadas. Entretanto, em A Esposa, a fúria internalizada da protagonista vem de um lugar menos elusivo, e Close está cintilante assim que Joan materializa suas emoções e encara o marido mimado com intensidade – Pryce, ótimo como Joe, é positivamente ofuscado pela entrega enfurecida de Close em sua discussão final.

Apesar de esteticamente indeciso, variando entre planos longos com uma câmera na mão trêmula e uma decupagem mais clássica, o diretor Björn Runge reconhece as principais forças de seu filme – Close e o texto – e guia-se através delas. A já mencionada conversa no bar com Nathaniel, por exemplo, é realizada num plano / contraplano tradicional, mas vai sutilmente apertando os quadros, que passam de médios para closes – sem trocadilho – para trazer atenção aos rostos dos atores, à medida em que um detalhe de grande importância possa transparecer nas entrelinhas do diálogo. Da mesma maneira, as duas belas cenas em que Joan e Joseph dividem a mesma linha telefônica, durante dois anúncios decisivos de suas vidas, comovem pelo carinho às interpretações e a entrega do texto.

A Esposa pode não ser uma obra majestosa, tropeçando, por exemplo, em tudo que envolve o filho interpretado por Max Irons – desde sua interpretação à participação que ocupa na trama – ou mesmo em algumas das escolhas feitas – ou não feitas – por Runge para compor suas cenas. No entanto, confiando quase que exclusivamente nos esforços de Glenn Close e a roteirista Jane Anderson, o resultado acaba por exaltar aquilo que queria desde o início: colocar o talento feminino em destaque, e mostrar mais uma vez que por trás de um bom filme, grande ou modesto, há quase sempre a inspiração ou o trabalho de grandes mulheres.

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