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Crítica | Superação: O Milagre da Fé

No cinema mainstream norte-americano, convencionou-se chamar os filmes de temática religiosa, a grande maioria cristã, de ‘faith-based’, algo como ‘baseado na fé’. Porém há uma dicotomia: enquanto algumas dessas obras partem dos princípios da fé para apresentar algo que a excede, reconhecendo o papel humano – de qualquer humano – no desenrolar de suas histórias, outras apoiam-se exclusivamente nela como uma espécie de magia que age por conta própria para salvar o dia. Baseado em um caso ainda recente, Superação: O Milagre da Fé pende para a segunda abordagem e acaba não dizendo tanto quanto gostaria sobre a manutenção da fé de seus protagonistas.

Para quem não conhece o caso, em 2015 o garoto John Smith (Marcel Ruiz) estava brincando com os amigos sobre um lago congelado e, depois que o gelo quebrou, afogou-se fatalmente. Smith ficou 45 minutos sem qualquer pulso, até que sua mãe Joyce (Chrissy Metz) orou e o coração do garoto voltou a pulsar. Depois disso, ficou inconsciente durante dias, ainda sob o perigo de falecimento, e o melhor dos casos era que recobrasse consciência com severos danos cerebrais. Joyce ainda assim manteve sua fé e o filho, sem muita explicação, se recuperou completamente, sem sofrer quaisquer sequelas sérias. É, sem dúvidas, uma história extremamente incomum e difícil de crer.

A tentação de tornar o acontecimento em ponto de partida de um filme deveria ser grande, considerando a grande difusão dessa história na mídia e o crescimento do cinema gospel nos EUA – há hoje histórias de todo o tipo, de comédias até suspenses investigativos. Mas seria o fato ao centro capaz de sustentar um longa inteiro, ou a versão cinematográfica teria que tomar suas próprias liberdades no processo para elevar seus acontecimentos a um status de espetáculo audiovisual? A resposta é a esperada, e o filme dirigido por Roxann Dawson aborda sua história visando, acima de tudo, o entretenimento.

A introdução já conta com movimentos de câmera ágeis, inserções de música pop, piadas aqui e ali, e portanto assume um estilo mais descolado que o habitual dentro de seu subgênero. De certa forma, é como faz o pastor interpretado por Topher Grace, com pomada no cabelo e que realiza shows de música cristã com rappers e luzes coloridas, entre outras coisas. Em um certo ponto, o personagem diz a Joyce que faz essas coisas para atrair os jovens de volta à igreja, ou, nas palavras dele, “que se amarrem” nisso de novo. Superação: O Milagre da Fé parece também direcionado à essa parcela do público, e por isso adota estratégias similares.

No entanto, se o longa tem algum sucesso em expandir-se para mais de uma geração dentro do público-alvo religioso, há tropeços quando a obra tenta alcançar mais do que consegue: os ateus e agnósticos, por exemplo. Não só é estranho constatar que só há um único personagem ateu aparente na cidade onde se ambienta o longa, mas esse personagem, interpretado por Mike Coulter, é também o único a escutar a “voz de Deus” em cena. Sendo ele o bombeiro que conseguiu retirar o corpo de John da água, o feito é creditado a essa voz que o guiou, o que não só é um detalhe implausível da história como torna o personagem uma contradição.

Outras situações também são atribuídas às intervenções divinas, e a presença frequente dessa divindade na história soa, sem uma palavra que melhor expresse isso, forçada. Com uma série de pequenos exageros, a fé torna-se quase arbitrária neste filme, e embora o ato final reconheça um pouco essa arbitrariedade, com personagens que questionam porque John foi salvo e nenhum de seus entes perdidos não, acaba mal explorada e discutida em uma obra que usa tão descaradamente de artifícios para comprovar a eficiência das orações – os efeitos sonoros cafonas usados para representar as intervenções divinas só reforçam essa artificialidade.

Debaixo dos truques todos, há histórias promissoras esperando para serem aprofundadas. Há uma temática forte de adoção, tanto do ângulo de quem dá para adotar e se culpa por isso, e de quem é adotado e se sente deslocado. Joyce é mais capaz de detalhar a história de seu primeiro bebê, o qual entregou à adoção, no livro The Impossible, mas aqui esse detalhe é reservado a apenas um curto diálogo com o pastor. Já John, que é guatemalteco e foi adotado por Joyce após sua mãe “desistir dele” – não fica claro o motivo no longa -, se vê como um estrangeiro em sua própria vida, algo que é trabalhado nos primeiros minutos mas, após o acidente, fica de escanteio até os momentos finais.

No fim, a insistência em uma visão limitada de fé acaba desestabilizando a mensagem central de Superação: O Milagre da Fé: Deus se reflete nos esforços de cada uma dessas pessoas que se unem pelo bem do próximo, crendo elas ou não em algum deus. Aqui, são os médicos, os bombeiros, os parentes, os colegas de escola e conterrâneos do garoto afogado. Essa ode à coletividade é louvável, porém no fim tudo parece depender da crença fervorosa em meio ao inexplicável. Não há margem para outra perspectiva se não a de Joyce e os outros cristãos do filme, que atribuem todo o espetáculo a Deus e suas orações, sem espaço para outras interpretações e, portanto, apenas reforçando o ceticismo dos demais.

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