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Crítica | Adoráveis Mulheres

Julgando pela existência de inúmeras adaptações ao cinema e à televisão de Little Women no decorrer do século XX, o romance de Louisa May Alcott tornou-se uma das obras-chave de literatura juvenil norte-americana ao longo do último século. Adoráveis Mulheres, adaptação escrita e dirigida por Greta Gerwig (Lady Bird), tem respeito às tradições, mas vai além da obra para encontrar sua autora em formação, imaginando a mente por trás de suas celebradas personagens.

Na versão de Gerwig, a história de Jo (Saoirse Ronan), Amy (Florence Pugh), Meg (Emma Watson) e Beth (Eliza Scanlen) se inicia dividida em dois períodos: o auge da adolescência e o início da vida adulta. A divisa entre os dois, no entanto, fica marcada pelos reflexos de eventos externos como a Guerra Civil e mesmo o surto de escarlatina, afinal trata-se do século XIX, mas Gerwig persiste em preservar elementos da aura juvenil das irmãs para ambos os momentos, apenas em dosagens diferentes.

O real desafio enfrentado pela diretora e roteirista está no uso de linhas temporais paralelas, que se intercalam ao longo de boa parte do filme sem qualquer demarcação explícita – além de uma alteração da paleta de cores e certas escolhas da fotografia de Yorick Le Saux. Felizmente, o talento e experiência de Gerwig no guião garantem que os riscos desta aposta sejam recompensados, mesmo que crie um possível obstáculo para certos espectadores. Assim, Adoráveis Mulheres parte em busca de sua assinatura – e a encontra.

Os tempos paralelos, que envolvem as irmãs juntas em um período de ouro e isoladas em um tempo futuro, podem parecer mero exibicionismo de roteiro e montagem em alguns dos primeiros instantes, mas pouco a pouco, quando temas e mesmo escolhas de mise-en-scène coincidem e rimam entre os dois, eles passam a se justificar como uma maneira de potencializar as emoções do longa muito além do que está no papel e as excelentes interpretações de todo o elenco, que se completa com Laura Dern, Meryl Streep e Chris Cooper.

Mais do que qualquer outro filme recente, Adoráveis Mulheres faz sentir a quase todo momento a presença de personagens específicas em cena através das escolhas de linguagem, seja alterando a dinâmica da decupagem de maneira radical – a entrada das meninas no escritório de Laurie (Timothée Chalamet) e John (James Norton) – ou introduzindo novas cores e adereços ao quadro. Uma cena em grupo corre totalmente diferente de outra feita a dois, já que a dinâmica das irmãs reunidas se faz tão marcante e repleta de ternura.

Assim como Jo, que aqui funciona como um pseudônimo da própria Alcott, o filme de Gerwig então mede o tempo e suas experiências através de gente, portanto dando seu ênfase à presença e à ausência de pessoas queridas nos diferentes momentos da vida de sua protagonista. Se em diversos momentos a diretora oferece pequenos reencontros felizes entre personagens, o ponto de convergência entre passado e presente que Gerwig e o montador Nick Houy escolhem é capaz de evocar o luto e as saudades com grande impacto dramático, dizendo ao que vieram com a estrutura inicialmente deslocada.

Quanto à busca pela personalidade por trás da obra, a formação de Jo como mulher e indivíduo artístico depende tanto quanto o sucesso do filme destes sentimentos tão acentuados. Enquanto as irmãs possuem personalidades fortes e específicas, sendo Meg a mais recatada, Beth a disciplinada e Amy a “aborrecente”, Jo passa por ambos os períodos indo ao encontro de uma voz própria, uma à qual possa dedicar toda sua força jovial, por isso abrindo mão de convenções como o amor romântico e a vida doméstica a contragosto de todos.

Mas para que seja uma, Jo precisa ser um pouco de todas elas, e desta forma Adoráveis Mulheres adentra uma nova camada metalinguística, com a personagem, uma escritora aspirante, inspirando-se livremente nas próprias vivências e também as de suas irmãs para conceber uma obra verdadeira, que fale com o coração de algum público. O aspecto mais comovente disso está na constatação da maturidade que Jo e as irmãs conquistam, superando desavenças passadas e tornando-se gratas por suas presenças nas vidas umas das outras.

Além disso, ao longo da adaptação, surgem outros vislumbres da faceta artística de Jo, dedicada a escrever romances e peças teatrais mas forçada a fazer concessões sempre que tenta vendê-los a grandes editoras. Na mesma ética e lógica do “artista contrabandista”, a jovem passa a se mostrar mais e mais capaz de fazer um balanço entre suas exigências pessoais e as expectativas de outros em sua produção literária. De uma perspectiva histórica, esta parte da trama pode até soar anacrônica, mas com certeza satisfaz.

Não só estas passagens permitem comentários realmente pertinentes sobre a condição da protagonista como mulher e criadora de histórias, tendo de encontrar seu espaço em um mercado saturado por vozes masculinas, como abrem caminho para algumas agradáveis surpresas em seu brilhante desfecho. O filme de formação então se revela não só como um outro olhar sobre Little Women e Jo, mas um registro da evolução de Greta Gerwig, saindo debaixo de sombras alheias para revelar também sua voz.

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