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Crítica | Maria e João: O Conto das Bruxas

Maria e João: O Conto das Bruxas pode inicialmente aparentar como um projeto feito unicamente para apresentar um conceito caça-níqueis de releitura, neste caso acima do conto de fada João e Maria, na tendência atual hollywoodiana. No entanto, para aqueles que notarem o crédito de Oz Perkins como diretor da obra e que conhecem os trabalhos anteriores deste intrigante cineasta, haverá a expectativa de algo fora da curva habitual do terror mainstream. Para a felicidade dos admiradores de Perkins, é majoritariamente o caso.

Apesar de apostar em uma atmosfera soturna, é preciso dizer que Maria e João não descarta elementos mais fabulares ou fantasiosos do conto original, inclusive acenando ao surrealismo já em sua passagem introdutória. A trama, que apresenta o encontro dos dois irmãos com a bruxa má (Alice Krige) da perspectiva de Maria (Sophia Lillis), funciona principalmente a serviço de uma aura intimidadora, cada vez mais fortalecida pelo mergulho em pesadelos e sem porto seguro na realidade.

As escolhas de Perkins vão muito além do ornamento estético, que é surpreendentemente forte para um projeto tão pequeno. Com belas imagens, o filme poderia recair em um mero exercício de estilo masturbatório – um que é bastante estiloso, diga-se mais uma vez de passagem -, mas o diretor usa de seu senso estético para acentuar os sentimentos internos de Maria, uma jovem em processo de amadurecimento que, embora viva em um mundo de conto de fadas, sente na pele agruras reais ao tentar proteger o irmão caçula João (Sam Leakey).

Por mais que a ideia do roteirista Rob Hayes em espelhar os demônios internos da protagonista sobre um vilão corpóreo seja esperada em uma produção do tipo, os embates entre Maria e a Bruxa que tenta seduzi-la se distinguem pela natureza contida, apoiando-se nas atuações nuançadas de Lillis e a veterana do gênero Krige. O foco de Perkins e Hayes neste jogo de poder discreto leva por água abaixo as expectativas do público adolescente por um terror fácil, mas pode justamente cativar o interesse de outros espectadores.

É possível dizer que a cada curva prevista, Perkins nos apresenta quatro outras decisões que alteram a perspectiva do público, por vezes literalmente. Há, por exemplo, uma decisão recorrente e muito interessante de quebrar com a construção tradicional do ponto de vista na mise-en-scéne. A espiada de Maria através do olho mágico e a partida de xadrez subvertem a regra do eixo de cena em 180 graus, colocando o espectador na posição de um olho que tudo vê – símbolo recorrentemente associado a questões ocultas -, desestabilizando nossas noções de espaço.

Felizmente, esta troca do susto tradicional pela experimentação estética constante não configura um terror frouxo. Pelo contrário, ao estruturar o longa de forma cíclica e sem cortes aparentes entre realidade e pesadelo – tudo pode ser real, tudo pode ser um pesadelo -, Perkins constrói um crescendo impressionante ao macabro, apresentando imagens sucessivamente grotescas – a preparação do “banquete” marca um excelente uso do CGI para chocar e estender os limites da censura PG-13.

O clima macabro nunca cessa, já que a peculiar trilha sonora composta por ROB se faz presente a quase todo momento com seus sintetizadores e temas recorrentes. Inspirando-se em faixas de terror giallo – por vezes é inevitável lembrar da banda italiana Goblin -, subgênero do qual Perkins bebe aos montes aqui em sua construção atmosférica, este é um excelente exemplo de música intrusiva que funciona. Troca-se o jump-scare barulhento pelo desconforto contínuo do ruído.

A atmosfera se sustenta também no excepcional trabalho de fotografia e design de produção. Feixes de luz adentram casas através de vidraças coloridas, e o uso de cores artificiais contrasta com a iluminação naturalista de outras cenas a fim de sinalizar a presença de forças sobrenaturais. Remetendo ao que foi visto em O Conto dos Contos, do italiano Matteo Garrone, a equipe encontrou um meio-termo fascinante entre o natural e o irreal para captar a essência brutal dos contos de fada primordiais.

Há um grande porém para tudo isso, ainda assim. Talvez por requisição dos produtores, Maria e João: O Conto das Bruxas quase sabota sua forte poção com um único ingrediente deslocado: uma narração em off completamente didática. A incerteza entre pesadelo e realidade? Maria a expressa em alto e bom som. O medo de alienar o espectador é palpável, com a protagonista repassando até mesmo detalhes que nos são comunicados visualmente.

Por basear-se fortemente neste mesmo voice-over em seu desfecho, a impressão final deixada pela obra de Perkins pode ter seu efeito psicodélico diluído, mesmo que opere para amarrar a boa e velha “moral da história” vista nas fábulas. Ainda assim, deve-se admirar o esforço louvável de uma produção de estúdio como essa em encontrar um equilíbrio único entre o que se vê no terror arthouse, cada vez mais popular com títulos como Hereditário e O Farol, e os conceitos-chave chamativos dos terrores populares – que aqui, no caso, ficam apenas no nome.

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