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Crítica | Cafarnaum

No início de Cafarnaum (ou Caos, como as legendas traduzem), novo longa da diretora libanesa Nadine Labaki, somos apresentados a um bairro de Beirute com planos aéreos que evidenciam a escala da miséria que se assolou por ruas e cortiços. Nessa realidade, problemas como a violência tornaram-se meramente sintomáticas, ao ponto de crianças brincarem felizes com metralhadoras feitas de lixo e outros materiais. Uma dessas crianças é Zain (o excepcional Zain Al Rafeea, merecedor de uma coleção de prêmios), o protagonista do filme, que depois é visto sob custódia por esfaquear um homem e, logo em seguida, processando seus pais por ter nascido.

É um ponto de partida espantoso que anuncia uma experiência que pode ser muitas coisas, menos fácil. A trama volta no tempo e nos apresenta à difícil realidade de Zain, um dos filhos mais velhos em uma casa cheia de crianças mas com pouco a oferecê-las além das condições mais básicas. São elas – inclusive as pequenas – quem lavam as próprias roupas, de uma maneira quase que improvisada, enquanto os pais (Kawsar Al Haddad e Fadi Yousef, muito bem caracterizados) cuidam das “coisas de gente grande” do jeito que podem. A câmera, geralmente na mão, registra tudo isso com imediatismo, na altura das crianças.

O som, contudo, é o que tem grande papel em estabelecer este ambiente caótico, e não se sabe o que é mais barulhento: o cortiço onde vivem ou a cidade de Beirute. Essa cacofonia toda, com choros, buzinas e xingamentos tem um impacto imediato. Até mesmo os momentos de silêncio são ruidosos, como uma conversa noturna da família invadida por um gerador barulhento. Muitos filmes podem usar o som como principal recurso para imersão, mas aqui isso é feito especialmente bem, sendo quase um choque assim que o longa começa.

Esta violência auditiva faz crer que Cafarnaum será mais uma daquelas obras que investem na crueza intragável para contar uma história profundamente niilista, mas não é bem o caso. A trama é bem dura com suas personagens, principalmente Zain, que logo de início deve esconder a menstruação da irmã mais velha, Sahar, para que a garota não seja trocada por algumas galinhas como esposa para o comerciante da esquina. Após uma corrida de obstáculos, traçando um plano de fuga para a irmã, tudo dá terrivelmente errado. Mas o filme, embora tristíssimo, não se limita a tragédias ou fatalismos.

Por mais que Zain tente mudar sua realidade e não consiga, sua consecutiva jornada por Beirute após fugir de casa sozinho traz momentos preciosos e que geralmente soam sinceros. O encontro no ônibus com um senhor fantasiado de “Homem-Barata” proporciona um contato breve de Zain com seu lado mais lúdico, com marcas de uma adultez precoce: passeando pelo circo onde o homem trabalha, o garoto despe os seios de uma estátua sobre um carrossel. Essa ação, por sua vez, cria uma conexão com outra personagem chave do longa, Tigest (Yordanos Shiferaw, outra forte presença), uma imigrante ilegal da Etiópia que batalha para manter e alimentar o filho de 1 ano.

Tigest é uma figura importante para revelar o compasso moral de Cafarnaum, que esteve envolvido em controvérsias desde Cannes por conta de sua visão de mundo – embora o fato de seguir a subjetividade de uma criança possa justificar as posições radicais por si só. Rumo ao final do longa, Zain diz que a solução para o fim de seu sofrimento seria a seguinte: que seus pais parem de ter filhos. Pode soar como um julgamento de pais pobres pelo infortúnio dos filhos, mas não vejo o ponto como sendo esse. Zain fala especificamente de seus pais, que o xingam a todo momento, que traem sua confiança para vender a irmã ao comerciante da esquina. A etíope, então, é a prova de que a fala de Zain não deve ser generalizada.

Tudo que Tigest faz é pelo filho Yonas (Boluwatife Treasure Bankole, que faria a festa em um Oscar para bebês), e seus momentos de afeto com a criança fazem um contraste necessário com a família de Zain, ao ponto de mostrar que a cineasta Nadine Labaki não fala bem a favor de uma eugenia, mas sim a favor de uma maior empatia de pais para filhos, apesar de todas as dificuldades. Até mesmo Zain experimenta, durante um longo trecho de Cafarnaum, o duro ofício de cuidar de uma criança, quando Tigest o deixa sozinho com Yonas por alguns dias. Do seu próprio jeito, transgredindo algumas regras, Zain o faz com um capricho impressionante, mas certamente sente o peso disso nas costas.

Por fim, a breve participação de Labaki como a advogada de Zain, que tem seu julgamento moral prontamente desarmado pela mãe do menino no tribunal, reforça seu entendimento de que a realidade abordada no filme é complexa demais para determinar certos e errados, mas pode, por outro lado, parecer também uma decisão vaidosa da diretora. Quanto à abordagem, é tudo uma questão de ênfase. Alguns veem, ainda que compreensivamente, ênfase num posicionamento moralista e eugenista ou até uma exploração da pobreza como recurso dramático – o uso de flashforwards para criar apreensão talvez não seja a estratégia mais honesta, realmente, e algumas cenas tentam esconder seu vazio por trás de imagens de fácil impacto.

Entretanto, fui mais impactado pela exaltação da figura de Zain, um garoto extraordinário que quer transformar a realidade medíocre na qual nasceu. Embora diga e faça algumas coisas questionáveis, mostra-se também muito solidário e atento, dando o pouco que tem para desconhecidos em uma situação similar. A conclusão pode soar um tanto forçada no tom extremamente otimista, quebrando de certa forma com o equilíbrio tonal de antes, mas ainda é admirável por deixar algum vislumbre de esperança àqueles personagens, diferente de obras que se satisfazem apenas apontando tragédias e deixando seus protagonistas para os cães. Não há solução apontada para seus problemas, mas o caminho fica um pouco mais iluminado.

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