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Crítica | Tolkien

Um dos maiores desafios enfrentados pelas biografias de grandes artistas está na forma com a qual se busca retratar a inspiração, ou de onde ela se origina. Muitas cinebiografias se limitam a um molde que prioriza o número de fatos a serem retratados sem necessariamente considerar sua importância para a formação do indivíduo artista. Embora conte com uma execução convencional, Tolkien se coloca um pouco acima da média por optar focar-se na formação de bagagem, cultural e emocional, que induziu J.R.R. Tolkien a tornar-se o autor de algumas das maiores obras de fantasia já concebidas: O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion.

Em parte, Tolkien é o típico filme de formação que se convencionou chamar de “coming of age”. Vemos como John Ronald Reuel Tolkien (Harry Gilby / Nicholas Hoult) adaptou-se a uma nova rotina após perder a mãe ainda jovem, como conheceu seus amigos da T.C.B.S., e o encontro do grande amor de sua vida, Edith Bratt (Mimi Keene / Lily Collins). Como tantas outras obras centradas em jovens rapazes nascidos no século XIX – e há tantas -, há de fato muitos lugares comuns, e o longa de Dome Karukoski (Tom of Finland) não procura explorar essas mesmas temáticas de um novo ângulo. Isso deve resultar em uma série de deja vus ao público acostumado a essa espécie de cinebiografia de período.

Por outro lado, Tolkien traz belos vislumbres da gana intelectual, não apenas de seu protagonista mas como de outras personagens. As artes são representadas como fator propulsor dos talentos e da imensa curiosidade de Tolkien pelas novas etimilogias que, por fim, tornariam-se línguas e conceitos próprios em sua fantasia épica. O Anel de Nibelungo, ópera de Wagner que pode ter influenciado sua concepção do Um Anel, é apresentado indiretamente pela amada Edith. Outras personagens, por menores que sejam, são tidas como influências diretas e indiretas sobre as criações futuras. O longa toma liberdades criativas, por exemplo, para sugerir a origem do nome Samwise Gamgee, símbolo do companheirismo.

A 1ª Guerra Mundial surge como uma disrupção deste processo de formação, para Tolkien e para seus amigos. O campo de batalha, a princípio, é usado como dispositivo de roteiro para acomodar o recorte pessoal de sua história. A estrutura aqui é uma de rememoração, com o presente de Tolkien na guerra intercalado às suas memórias de um período que, embora não livre de decepções, havia sido um de desabrochamento ao lado de amigos, amada, familiares e professores. A vida e a morte entram em um embate que é representado de forma internalizada, com alguns leves floreios que indicam o efeito da brutal experiência sobre sua fúria criativa. As imagens iluminadas do passado entram em conflito com o campo de guerra opaco.

Mas as cenas de batalha expõem, no entanto, uma provável fragilidade da obra: sua dependência de uma bagagem emocional do espectador para com os escritos de Tolkien e principalmente com suas adaptações ao cinema. Em meio à guerra, os floreios criativos do protagonista são inseridos como criaturas animadas em CGI, uma decisão que se prova pouco sutil e às vezes até um tanto cafona para ligar seu trauma à criatividade. A trilha musical de Thomas Newman, por mais bela e adequada ao sentimentalismo do filme, toma claras influências sobre o trabalho de Howard Shore para os longas de Peter Jackson. Às vezes, Tolkien parece mais interessado em cutucar o imaginário do fã do que lhe acrescentar algo novo.

Além disso, as influências e a gana de Tolkien ficam evidentes, mas ironicamente não seu talento. Como é de costume com longas biográficos, a prova dos talentos do protagonista está, além da reverência garantida do público, limitada às falas de outras personagens. “Você é o mais talentoso de todos nós”, diz um de seus amigos da T.C.B.S, e devemos comprar esta afirmação com base em nossa admiração prévia do biografado. Não vemos nem ao menos seu processo tomando forma. Pelo menos, diferente de Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody, não o vemos criar seu magnum opus em uma sentada. Mas isso não torna a omissão do processo, com suas frustrações e virtudes, menos decepcionante.

Porém, se tomado como o drama sentimentalista que se propõe a ser, Tolkien oferece um resultado competente. O diretor Karukoski compõe cada momento com elegância estética, fazendo bom uso da fotografia de Lasse Frank Johannessen, que prioriza luzes volumétricas naturais, e do restante dos valores de produção, principalmente quando retrata as trincheiras. Sem se limitar à beleza pictórica, ele também externa um olhar curiosamente íntimo em outros momentos, valorizando pequenos gestos afetivos – o toque de um amigo tem a mesma intensidade que o toque da amada – e closes nos rostos dos atores. Por fim, as boas interpretações, especialmente de Lily Collins, azeitam a abordagem e fazem do filme um prazer efêmero aos assíduos por dramas de época comportados, mas funcionais como este.

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