Séries médicas não são, nem de longe, incomuns à televisão. Os americanos descobriram muito tempo atrás que séries procedurais, focadas em “heróis da vida real”, possuem um grande apelo ao público geral, além de um enorme potencial para inúmeras histórias que compõem rotinas empolgantes e, ao mesmo tempo, de fácil assimilação. A série da Globo, Sob Pressão, se mostra plenamente consciente do apelo de seu gênero, mas também procura se distinguir das comparações gringas, abraçando justamente os aspectos que fazem a realidade brasileira ser tão diferente da americana.
“Heróis da vida real” é um termo utilizado para descrever os profissionais que prestam serviços públicos essenciais para o andamento de uma sociedade, e que muitas vezes são obrigados a prestar este serviço por mero altruísmo ou convicção, enfrentando circunstâncias desafiadoras e, muitas vezes, injustas. Médicos já foram identificados desta maneira em diversas produções ao redor do mundo, principalmente com as séries de TV aberta americana (como as famosas E.R. e Greys Anatomy), e suas rotinas costumam ser exploradas de maneira romântica, mais acessível para o público, focando nos dramas pessoais de seus personagens em meio ao cenário caótico de suas profissões. Esta abordagem é comum, pois o espectador possui muito mais familiaridade com problemas universalmente reconhecidos (como depressão, carência, desgaste, admiração..) do que com qualquer situação médica, repleta de elementos dramáticos conhecidos apenas por membros da área.
Sob Pressão entende esta abordagem, e prepara seus personagens, desde o começo, para serem explorados como indivíduos, antes de serem explorados como profissionais. Marjorie Estiano e Júlio Andrade assumem o casal protagonista da série, dois personagens extremamente “quebrados” e atormentados por traumas complexos. Suas falhas e aflições são tão intensas quanto suas convicções e resiliências, o que acaba tornando-os personagens interessantes e substanciais o suficiente para que nenhum lado destas histórias (tanto pessoal quanto profissional) caia na monotonia. Os dois médicos são apresentados como verdadeiros heróis, lutando contra suas próprias adversidades em função de ajudar o outro. Seus aspectos morais não são o foco de conflito da série, e apenas definem suas personalidades como sendo ideais para o público acompanhar, e torcer.
Os conflitos, na verdade, surgem deste cenário que é muito discutido, porém pouco retratado para a audiência brasileira comum. Diferente dos EUA, aqui no Brasil nós temos uma estrutura de saúde pública, tão entranhada na corrupção e na burocracia quanto qualquer outro serviço público do nosso país, e a precariedade desta estrutura é que se torna o grande foco de “Sob Pressão”, mostrando ao público as maiores diferenças (ou, os horrores) entre esta realidade presenciada por uma grande parcela da população, e o que é mostrado nas típicas séries americanas do gênero. A série utiliza estas divergências espantadoras para construir as diferentes tramas de cada episódio, produzindo representações que estão evidentemente posicionadas para servirem como alertas ao público (Ao final de cada capítulo, é exibido um aviso com precauções e números de telefone para o tema que foi tratado nesta semana). É importante ressaltar que este tipo de “serviço social” que a série se propõe a fazer, dificilmente consegue ser transmitido para a audiência de maneira orgânica e eficiente, em diversas outras produções. Mas Sob Pressão valoriza estes cenários representativos como um meio para seus dramas, e não como um objetivo forçado. O resultado, são histórias cativantes e intrigantes que fazem o espectador se importar com os personagens em cena, para então retratarem a posição que a série toma em cada caso específico. Esta é, talvez, a maior conquista da série: ser capaz de captar a atenção do público sem presunção, e naturalmente instruí-lo como consequência.
O texto da série em geral tem alguns momentos da típica plasticidade que nós, brasileiros, constantemente observamos em produções nacionais. Boa parte deste problema recorrente, no entanto, acaba sendo relevada por ótimas interpretações, com destaque para Marjorie Estiano. Por um lado, Júlio Andrade acaba colocando em cena um Evandro tão desconectado de suas emoções, que seu personagem, muitas vezes, carece de uma naturalidade cuja falta já é percebida no diálogo em si. Estiano, por outro lado, entrega o que pode muito bem ser visto como seu melhor trabalho, tanto na TV quanto no cinema, dando vida à uma personagem responsável por muitos momentos importantes para esta missão representativa da série. Carolina é uma protagonista que enfrenta vários dos obstáculos e terrores que são amplamente discutidos na sociedade atual, dentre eles o abuso sexual, o abuso infantil, a depressão, e a coragem necessária para denunciar aqueles que a ferem. Fazer com que todos estes problemas sejam tratados e interpretados simultaneamente, e de maneira verossímil, não é uma tarefa fácil, nem para os roteiristas, e nem para o elenco, mas a atriz representa o melhor exemplo de como é possível construir um personagem capaz de carregar tamanha carga dramática e, ainda assim, cumprir as trajetórias necessárias, tanto para a história, quanto para a representação eficiente dos temas em evidência.
A fotografia , bem servida com os cenários exclusivos ao ambiente da série, é condizente com as propostas da trama, e procura retratar a rotina destes personagens com frieza, sem romantizar os momentos de verdadeiro heroísmo que são encarados como corriqueiros pelos médicos deste hospital. Para cada grande momento de vitória, há sempre um sacrifício pessoal ou uma consequência frustrante, e as composições e montagens da série refletem este contraste com fluidez e eficiência, com medidas adequadas de dramaticidade. A mesma dedicação, no entanto, não acaba sendo observada na trilha sonora, que traz a sensação de um pensamento posterior, e poderia ser utilizada com mais integração às cenas, mesmo em toda sua sutileza.
Ao final de seus nove episódios, Sob Pressão conquista com louvor seus objetivos de integrar alertas sociais às narrativas de seus personagens, e traz o apelo dramático pessoal que o público (com suas referências) poderia buscar em uma série sobre médicos, sempre com um tom emocional bem equilibrado e progressões engajantes de suas tramas. Os cativantes protagonistas conseguiram enfrentar seus difíceis obstáculos, e estas conquistas não soam superficiais ou banais, irrelevantes perante os capítulos que ainda estão por vir. Suas evoluções apenas abrem espaço para explorações ainda mais capacitadas e bem estabelecidas deste cenário incrivelmente próximo de nós, espectadores. Com a segunda temporada da série já confirmada, a Globo reafirma sua capacidade de produzir narrativas seriadas tão boas quanto qualquer referência gringa. Às vezes, ainda melhores, quando se dispõe a retratar a rica distinção de nossas perspectivas nacionais.