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Assédio | Crítica - 1ª Temporada

Em meio à esta época do audiovisual, onde assuntos polêmicos vem sendo debatidos em obras de consumo e apelo geral, surge a mais nova produção da Globo, Assédio, uma série que, primeiramente, é díficil de se assistir com qualquer descontração. Torna-se ainda mais impactante descobrir que esta história foi baseada em um caso real, com vítimas reais, e consequências ainda mais perturbadoras do que uma ficção costuma ser capaz de produzir por si só. É uma série que requer uma certa resiliência do espectador (casual ou não), mas que merece ser assistida, tanto pelo seu tratamento relevante de temas complexos, quanto por seus atributos técnicos que reafirmam a qualidade alcançável por séries da Globo.

Antonio Calloni interpreta o médico Roger Sadala, um profissional extremamente respeitado em seu meio, apelidado de “Doutor Vida”, devido ao seu sucesso com práticas de inseminação artificial. DIversas mulheres o procuram ao longo de sua carreira atrás de, como ele mesmo diz, “realizar um sonho”. Chegam com disposição e grandes esperanças, querendo apenas a oportunidade de ter filhos. Estas mulheres assumem o protagonismo de cada episódio, contando seus diferentes contextos, suas diferentes influências, e retratando as experiências que vítimas reais tiveram com este personagem, baseado no condenado Dr Roger Abdelmassih.

Assédio traz uma narrativa cadenciada, estruturada com elementos documentais que intercalam diferentes períodos de tempo. Em seus seis primeiros episódios (muito diferentes de seus últimos quatro), acompanhamos as vidas individuais destas personagens, e vemos suas esperanças sendo destruídas, uma a uma, sem qualquer espaço para questionamento sobre o que está sendo visto em tela. São várias, as cenas que farão o espectador se encolher no assento, com retratos perturbadores, repulsivos, da violência sofrida por estas personagens. O sentimento só aumenta conforme as cenas passam, e vemos as vítimas passando pelas consequências do crime. A série demonstra que sua proposta não é apenas alertar o público para a existência deste tipo de criminoso, e sim evidenciar o cenário em que as mulheres se encontram quando passam por experiências tão traumatizantes e, ao mesmo, tão suprimidas por uma sociedade frágil.

Seguindo este começo, o espectador terá que se manter firme perante o horror com que a série retrata Roger Sadala. Vale notar os excelentes complementos gerados pela fotografia, que não se limita a suas composições simétricas, e produz algumas composições bem expressivas como a cena em que a repórter Mira (Elisa Volpatto) vai entrevistar Sadala, onde o cenário fica emergido em escuridão, com brilhos de trovões durante uma tempestade. Em certos momentos, pode-se notar uma semelhança entre a abordagem deste antagonista, e diversas produções sobre assassinos seriais, evidenciando que seus atos são tão impactantes quanto, porém nem de longe tratados com o mesmo escrutínio.

Assistir à estes primeiros episódios, onde tamanha barbaridade vai sendo perpetuada impune, e sem nenhum vislumbre de resolução para as personagens, produz um sentimento de desespero que claramente fazia parte da intenção dos roteiristas, mas que também acabará afastando espectadores que não estiverem dispostos a acompanhar uma história tão desprovida de otimismo em seu início. Como série, este desapego das normas narrativas de engajamento com os primeiros episódios acaba sendo um ponto negativo, mas o propósito da série está, evidentemente, longe de querer entreter, ou distrair qualquer espectador. A trilha sonora de Assédio também merece destaque ao lado da fotografia, tão polida e pungente quanto. Traz composições bem mais evidentes do que poderia se esperar dentro deste gênero, e procura estabelecer uma atmosfera de luxo e tranquilidade, mas com constantes contrastes em relação à cena, produzindo uma ambiguidade inquietante em diversos momentos.

Ainda em meio à este cenário desesperador, Assédio se propõe a explorar os motivos pelos quais tantas vítimas permanecem caladas após os crimes, e como uma pessoa pode justificar, para si mesma, seus atos horrendos. Sadala se enxerga como um homem quase-divino, convicto de suas crenças religiosas. Dentro de seu egocentrismo alarmante, o personagem se vê superior aqueles que passam por sua vida, e justifica seus “descuidos” e desejos como partes de seus direitos como tal ser superior. A completa falta de empatia em suas reflexões pessoais é, mais uma vez, desconcertante de acompanhar.

As protagonistas, por outro lado, também acabam enfrentando resistências dentro de suas próprias famílias, que se recusam a aceitar uma realidade traumatizante e (muitas vezes, inconscientemente) se esforçam para, também, justificar os atos do médico como não sendo suficientes para exaltação, ou repreensão. Coadjuvantes masculinos são retratados, em geral, com superficialidade e uma ignorância notável, o que, normalmente os classificaria como personagens mal escritos (a ironia de se ver personagens masculinos superficiais, perante todo o histórico de personagens femininas na televisão e no cinema, também não deve ser perdida). É relevante notar, no entanto, que estas construções acabam surgindo como consequência da proposta da série de adotar a perspectiva de suas protagonistas, atormentadas por tal ignorância e falta de perspectiva, e compõem obstáculos frustrantemente verossímeis para estas personagens dentro da trama.

Assédio acaba tendo seu engajamento prejudicado por uma estrutura cujo intuito não é capturar atenção, e sim expor seus relatos com o maior impacto possível. Dentro de sua proposta, entrega diversos momentos memoráveis para um elenco visivelmente dedicado e comprometido com suas complexas interpretações. Adriana Esteves fica, sem sombra de dúvidas ,com o grande destaque por aqui, dando vida à uma personagem que carrega a representação de diversos temas tratados pela série, com espetacular vulnerabilidade e emoção.

Eis que, então, todas as histórias individuais se cruzam na segunda metade da temporada, e temos as personagens retomando suas narrativas, com a força e o ímpeto que a série leva o espectador a esperar com ansiedade, perante todo o seu retrato depressivo. Os últimos episódios ganham tom de suspense e intriga, com pitadas de ação, evidenciando o heroísmo e o sacríficio de suas protagonistas com eficiência, mas longe de querer romantizar estas trajetórias inadequadamente. O resultado final, embora tenha conquistado suas metas de reproduzir um cenário alarmante, e substancializar os esforços de conscientização contemporâneos de maneira mais próxima, familiar, ao público brasileiro, também recompensa o espectador casual que se manteve disposto até aqui, e conclui sua história sem inocência, porém com otimismo e esperança. Como série, poderia capitalizar em cima de mais acessibilidade em sua narrativa. Como expressão artística, seus primores técnicos só não são mais elogiáveis que sua relevância como obra nacional, dentro deste nosso contexto contemporâneo.

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