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Watchmen | Crítica - 1ª Temporada

Com apenas mais alguns dias até o fim de 2019, e a lista de melhores séries da década quase concluída, eis que temos uma última candidata para considerar com total seriedade. A versão de Watchmen de Damon LIndelof para a HBO não só conseguiu fazer justiça ao material em que se baseia, como também nos trouxe algumas reflexões produtivas sobre a sociedade atual com uma notável qualidade técnica e narrativa que só me faz ficar ainda mais ansioso pelo futuro de produções seriadas como esta. 

É bem conhecido pelos fãs que Alan Moore, o autor das HQs originais, não costuma ver com bons olhos as alterações que qualquer adaptação de suas obras inevitavelmente acabam integrando ao material. E enquanto Zack Snyder dedicou boa parte de seus esforços a levar as HQs para a tela do cinema da forma mais pura que julgava ser adequada (lulas alienígenas à parte), Damon Lindelof resolve construir esta continuação de Watchmen demonstrando claramente sua reverência pelo material original, mas ao mesmo tempo, não se atendo a qualquer necessidade de assegurar a “fidelidade” que Snyder tanto prezava. 

A série de Watchmen traz, com certeza, uma coerência convidativa para todos aqueles que leram as HQs, ou ao menos estão familiarizados com a história por conta da adaptação cinematográfica. O universo apresentado é construído diante do espectador com apreço pelos elementos que definiam a “realidade alternativa” de Moore e seus Minutemen, enquanto também traz algumas subversões que contribuem para o seu retrato contemporâneo, traçando paralelos com a atmosfera política atual e algumas das principais discussões sobre o estado da nossa sociedade, fora das telas. 

Esta parte política de Watchmen é, certamente, seu ponto mais polêmico. Embora as novas tramas dêem continuidade a muitos dos temas abordados por Moore, a série de Lindelof também tem um grande foco em questões raciais,  e aproveita estes tópicos para discutir desde a intolerância radical de um grupo com ideais equivocados, até a maneira como enxergamos, interpretamos e remodelamos as figuras à nossa volta. Considerando o clima político dos EUA atualmente (e com o Brasil logo atrás), era de se esperar que a série acabasse construindo alguns retratos incômodos, ainda que produtivos para qualquer debate. 

Pois no centro de tudo, ainda permanece a mesma reflexão que movia o material original, quando Moore decidiu olhar para o conceito de “super-heróis” e trazê-lo para uma realidade mais cínica e condizente com o nosso comportamento ao longo do século XX. Afinal, o que é um vigilante? LIndelof não se propõe a apenas expor a humanidade por trás das máscaras, ou questionar os rumos de um mundo onde seres com poderes absurdos possuem suas próprias ambições e interpretações. Não é apenas sobre “Quem vigia os vigilantes”, mas sim sobre o papel destas figuras e suas repercussões, anos depois. 

AInda assim, é necessário notar que Watchmen, a série, habilmente evita cair nas armadilhas costumeiras de tantas sequências, reboots e afins que inundam o mercado do cinema e da TV atualmente. Um dos pontos de partida é, sim, retratar as consequências da obra original em um novo contexto, mas Lindelof ignora muitos dos apelos que outras séries e filmes parecidos vem tentando aproveitar, e não constrói a série em cima de meros retornos superficiais ou apenas procura reciclar o trabalho temático em que se baseia. Seria muito simples (e, hoje em dia, perfeitamente aceitável), apresentar um novo grupo de Minutemen, com diversos paralelos à história original e fan-service descarado. Ao invés disso, o que temos é uma série feita por alguém que se sentiu estimulado por Watchmen, e decidiu escrever sua própria reflexão. 

Adaptar o Dr. Manhattan já não é uma tarefa simples, mas expandir o personagem com tamanha coerência, é algo realmente memorável. O mesmo pode ser dito com ainda mais destaque para o arco de Ozymandias ao longo da série, questionando os rumos do “homem mais inteligente do mundo” depois dos eventos das HQs, e aprofundando a sua perspectiva peculiar de forma produtiva para a noção de “ciclo” que a série procura estabelecer com sua conclusão (Jeremy Irons, por sua vez, deveria ser lembrado durante a temporada de premiações por sua interpretação). 

Mas é com os novos personagens e seus arcos narrativos que Watchmen consegue se manter relevante e atraente, e com um roteiro estruturado da maneira ideal para episódios semanais, as várias preparações e reviravoltas são mais do que suficientes para manter o espectador engajado, quer este seja um fã do material original, ou não. 

Dizer que o roteiro da série se destaca por sua profundidade em meio aos absurdos deste universo alternativo, só se torna um elogio ainda maior quando nota-se a qualidade técnica da direção de episódios que resolvem fugir de abordagens seguras e que exigem muito mais atenção para suas composições, a fim de evitar cair na gratuidade ou no fetichismo. O mesmo pode ser dito da fotografia, que consegue manter a atmosfera diferenciada das HQs, mas sem produzir um distanciamento que prejudicaria os esforços narrativos da série para com seus tópicos contemporâneos. 

Lindelof já declarou que não estava pensando em continuar Watchmen além desta primeira temporada, e o episódio final proporciona conclusões satisfatórias para o que vinha sendo construído até aqui, além de ainda providenciar algumas resoluções interessantes para o próprio material original. Mas o grande foco deste final não está em suas revelações, ou grandes declarações sobre os temas que vinham sendo trabalhados, mas sim em determinar uma continuidade para este universo, e evidenciar que muitas de suas discussões são cíclicas. As pessoas sempre dizem que o mundo vai acabar, mas ele continua aqui, e sempre haverão aqueles que tentarão tomar o controle da história, quer reflitam sobre o direito de fazê-lo, ou não. 

Watchmen continua sendo uma história sobre vigilantes, em suas diferentes formas e perspectivas. Este é um universo que escancara a determinação de membros da sociedade que às vezes se sentem superiores aos outros, e por isso tomam para si a responsabilidade de controlar o que está à sua volta. E enquanto isso, também temos aqueles que apenas sentem o ímpeto de interferir no caos ao redor, por conta da falta de controle em suas próprias vidas. Mas no fim, tudo parece estar ligado a uma questão de controle, e se chegarmos a ver mais temporadas, é provável que ainda veremos personagens como estes tentando alcançar a solução para tamanha insegurança, indefinitivamente. 

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