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Spectros | Crítica - 1ª Temporada

Com um decepcionante desperdício de potencial, a mais nova série nacional da Netflix, Spectros, é evidentemente uma produção feita para o público internacional, com diversas representações construídas a partir de uma perspectiva claramente exterior, e uma proposta que chega a empolgar, mas nunca consegue superar a artificialidade de seu roteiro. 

Fazia tempo que uma série nacional não me incomodava tanto por sua falta de naturalidade, e pelo seu uso desenfreado de referências e fórmulas características do mercado americano. Dentro da Netflix, da HBO e do Globoplay, temos visto produções brasileiras que vem conseguindo desconstruir a nossa noção, como espectadores, de que os padrões americanos são os ideais, e diversos novos roteiros estão apresentando formas originais, produtivas e perfeitamente palatáveis de se dramatizar os diálogos nacionais de forma bem mais orgânica do que estávamos acostumados a criticar. 

Mas Spectros é um retrocesso nesta trajetória de, não apenas valorizar, como também aproveitar aspectos exclusivamente nacionais, para produzir conteúdos que soam originais ao público internacional, e ao mesmo tempo criam um sentimento de identificação inestimável com o espectador brasileiro. A nova série, no caso, se passa no bairro da liberdade, em São Paulo, um lugar caracterizado pela dominância da cultura japonesa. E embora tente-se abordar os aspectos culturais deste cenário com certa empolgação, é perceptível que tal abordagem está vindo de alguém cujas referências se aproximam muito mais de uma sessão de “Aventureiros do Bairro Proibido”, do que de uma tarde passeando por São Paulo. 

Tamanho estranhamento acaba fazendo mais sentido quando os créditos do primeiro episódio apontam que tanto o roteiro quanto a direção, que dão o tom à temporada como um todo, são assinados por Douglas Petrie, responsável por outras produções americanas da Netflix, mas cujo o conteúdo que mais se destaca em seu currículo para comparações à nova série, é a cultuada “Buffy – A Caça Vampiros”. 

O tom das aventuras de Buffy e seus amigos caçando vampiros de baixo orçamento está modestamente espalhado por esta nova produção, mas a proposta de Spectros parece estar mirando entre uma aventura empolgante nos moldes de “Aventureiros do Bairro Proibido”, e o tom satírico, equilibrado com ação, que define os filmes da “trilogia Cornetto” de Edgar Wright. 

Enquanto isso, do outro lado da produção, estão pensando em arcos narrativos dramáticamente relevantes para o que cada um dos personagens principais representa dentro deste cenário, ao mesmo tempo em que se considera a importância da representatividade cultural dos temas abordados pela mitologia da série. E o resultado desta junção de propostas acaba sendo, infelizmente, pouco produtivo dentro destes sete episódios, cujas durações variam entre trinta e poucos minutos, e uma hora completa. 

No que diz respeito ao tom satírico, a comédia da série é prejudicada pela tal artificialidade dos diálogos, em roteiros que soam como se estivessem sendo traduzidos do inglês para o portuguès, e cujas falas são dirigidas sem qualquer preocupação com a plasticidade das performances. Por curiosidade, experimente trocar o idioma da série para a dublagem em inglês, e veja como vários diálogos acabam soando mais naturais, menos gratuitos, e com intenções mais bem expressas (como comparação, tente fazer o mesmo com Samantha!, outra série da Netflix, e note como a situação se inverte, com a dublagem americana penando para tentar emular a fluidez cômica um tanto teatral dos atores). 

A comédia, então, é cortada pelos momentos em que Spectros quer construir sua atmosfera de tensão, com ameaças sobrenaturais e antagonistas construídos a partir de estereótipos. Há um esforço genuíno em tentar construir uma mitologia por aqui, aproveitando elementos históricos e noções familiares ao público, mas raramente encontra-se algum traço de inventividade para como esta mitologia vai sendo explorada pelos personagens. 

Uma exceção que talvez valha a pena ser ressaltada, é a parte onde os protagonistas entram em um bar de Karaoke com uma gerente misteriosa, onde apesar das caracterizações serem um tanto equivocadas, a liberdade cômica da cena comprova o potencial produtivo desta proposta, caso esta tivesse sido melhor trabalhada pela série como um todo. 

Entre diversas representações superficiais e estereotipadas, não seria díficil acabar encontrando momentos de discurso, crítica ou reflexão, que acabam soando forçados nas falas destes personagens. A polícia, por exemplo, chega a dizer coisas como “A gente é polícial. A gente pode fazer qualquer coisa”, com uma das protagonistas, em outro momento, os chamando de “fascistas”. A insipidez da construção narrativa de momentos como estes chega a confundir o espectador, que não sabe se tais representações tão superficiais são parte da comédia, ou se são apenas mais uma característica de um roteiro pouco orgânico. 

Para completar a confusão de propostas, Spectros ainda emprega uma estrutura não-linear em seus episódios, tentando conservar certos desenvolvimentos da trama enquanto prepara o terreno com seus protagonistas sendo interrogados pela polícia. A estrutura, no entanto, acaba trazendo a armadilha da redundância em alguns pontos, e ainda prejudica o ritmo da temporada, que poderia ser melhor aproveitada, caso a série tivesse dedicado mais foco ao seu lado cômico em episódios de menor duração. 

Dentro de tantos equívocos tonais, os esforços para construir cenas de terror em meio a este ambiente acabam enfrentando ainda mais obstáculos do que o normal, e embora algumas cenas possam empolgar o espectador que seja fã das referências da produção, é mais provável que a série acabe caindo naquela velha categoria do “terrir”, onde a falha do horror acaba gerando o riso de deboche, ou de desconforto. 

Eu conseguiria entender certas desconexões da realidade em uma série descompromissada, como uma criança paulista da Liberdade que se empolga com uma maratona de filmes de Dario Argento, ou até mesmo as caracterizações superficiais de mafiosos que parecem ter saído de um anime.

Mas o completo descaso com a singularidade dos temas, personagens e ambientes abordados, junto com uma incômoda falta de inventividade para se re-trabalhar as referências de terror, comédia e ação que vão sendo alinhadas a cada episódio, acabam tornando Spectros uma série que representa justamente o contrário do que a Netflix preza em suas produções internacionais. Infelizmente, qualquer potencial aqui foi seriamente limitado pela imposição de uma perspectiva que se sobrepôs ao que a série realmente poderia ter retratado. 

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