Críticas

Mostra SP | Crítica: Zama

Zama é o grande projeto da diretora Lucrécia Martel, o filme chega após 9 anos de preparação do projeto, deixando a diretora sem lançar nenhum título no período. O épico sobre as raízes latino-americanas é uma gigantesca coprodução entre alguns países (Brasil incluído), colocando em seus créditos grandes nomes do cinema como produtor do filme, por exemplo, Gael García Bernal, Pedro Almodóvar e Vânia Catania, brasileira responsável pela produção de longas como O Filme da Minha Vida, O Palhaço e Mate-me Por Favor. A junção de tantos talentos faz com que Zama demonstre sua grandiosidade desde os créditos iniciais, evidenciando esse grande projeto autoral da diretora argentina.

Zama parte do princípio de tentar investigar as raízes de todo um continente, um sentimento identitário do latino-americano que provém de configurações que se deram em seu período colonial. O longa se constitui como uma narrativa de fronteira, mas também remete aos grandes épicos sobre o descobrimento e a exploração de um continente estranho, tentando aliar visões distintas para entender essas relações embrionárias da América Latina.

O longa faz uma abordagem interessante desse local, não o identificando geograficamente, como se as paisagens retratadas pelo filme fossem qualquer lugar do continente, como também a América como um todo. Fala-se espanhol, português e algumas línguas indígenas, havendo por ali espanhóis, índios, portugueses, brasileiros, negros (que provavelmente vieram dos mais variados locais da África) e assim por diante, um local que coloca todos esses povos em intersecção e numa tensão sempre presente.

Zama toma o ponto de vista do colonizador para contar essa história, como o de costume nesse tipo de narrativas, algo que resulta certamente na constituição de um lugar exótico como a América Latina dos séculos passados. Esse de fato é o grande ponto de intersecção entre o filme de Martel e os épicos norte-americanos, os longas de exploração. Todavia, a obra não se constitui apenas dessa reprodução de um clichê em relação a seu objeto, Zama contém uma carga imaginária muito forte, um sentimento de reinventar aquele local, e isso passa pelo campo do imaginário e do fantasioso.

O filme acompanha a trajetória de Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho), um oficial da coroa espanhola que aguarda sua transferência para outra província, ele é obrigado a se juntar a um grupo de soldados para caçar um criminoso e explorar terras ainda selvagens. Essa narrativa esparsa e propositalmente solta, como os demais filmes da diretora, fazem com que as trajetórias de Don Diego de Zama seja um propulsor para se conhecer e investigar esteticamente esse continente, algo que faz do longa uma experiência extremamente potente e rico nas imagens que cria.

Lucrécia Martel realiza, então, um filme onde essa exploração visual das raízes latino-americana se dê por um imaginário simbólico, algo que evita a realidade, uma vez que ela reforçaria narrativas pré-concebidas, já vistas mais de uma vez. A terra representada em Zama parece ter saído dos relatos de Jorge Luis Borges, autor do realismo fantástico que pensou a Argentina e suas fronteiras como se estivesse falando de outra dimensão e é justamente o que acontece por aqui. Lucrécia tenta compreender o continente através dessa dimensão fantasiosa, não no mais óbvio realismo fantástico, onde surgiriam figuras bizarras ou de um campo onírico na realidade daqueles fatos, mas sim num mundo que parece se regular por suas próprias leis, uma outra dimensão, algo totalmente desconectado das representações e do mundo real, daquilo que foi narrado oficialmente nos livros de história sobre a América.

Essa dimensão outra de representação é totalmente refletida na mise-en-scéne de Lucrécia Martel, o rebuscamento estético da diretora surge a partir dessa investigação de uma diferente cartografia latino-americana. Com planos rigidamente bem compostos e poucos movimentos de câmera, a cineasta constrói um filme em que parece reproduzir cenas do cotidiano do local, tais como fizeram Jean-Baptiste Debret e Albert Eckhout, responsáveis pela representação pictórica do Brasil colônia. Todavia, em Zama essas imagens, que funcionam como quadros em movimentos revelam esse estranhamento, esse local que funciona a parte da realidade. As cores vibrantes, as figuras humanas que não param de se mover em cena e o enquadramento rebuscado faz com que sinta esse peso do irreal, de uma fantasia que compreende esse ambiente.

O longa começa com mulheres cobertas de lama sendo observadas pelo protagonista, uma imagem que já desconectada o lugar de alguma outra representação. Assim como todos outros planos e principalmente o ritmo do filme marcam esse estranhamento representativo. Naquela ambiente há essa sensação de eterna loucura, algo que incomoda aquele personagem principal que visivelmente deseja fugir da fantasia que é estar na América. Os rostos sempre suados, os quadros em movimentos com negros escravos sempre ao fundo se movimentando em função de outra pessoa (representação polêmica que mereceria ser problematizada num texto a parte) e a profusão dos mais diversos idiomas transforma aquele lugar num ambiente totalmente incômodo.

Em um momento, Don Diego de Zama diz ter saudades da Europa e a descreve com uma clareza absurda, mais descritiva que a própria América no filme, a sua interlocutora responde que sente mais falta daquelas terras quem nem mesmo a conheceu, um resumo do sentimento latino-americano, uma tentativa de fuga de seu próprio território. O protagonista, assim como o espectador, é fruto dessas incompreensíveis configurações que criaram a América Latina, terra que parece intrinsecamente ligada ao exotismo e a fantasia.

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