crítica

Não soubemos lidar com 'Ainda Estou Aqui' de Walter Salles

Ainda Estou Aqui (Divulgação / Globoplay)
Ainda Estou Aqui (Divulgação / Globoplay)

Após sair da première de “Ainda Estou Aqui”, que aconteceu nesse domingo dia 1 de setembro aqui em Veneza, passei a noite em claro. Literalmente. São agora 6h43 da manhã e eu ainda não consegui dormir, graças a tudo que vi e vivi naquela sala de cinema… graças à Walter Salles, Marcelo Rubens Paiva, Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Selton Mello e TODOS os envolvidos nessa produção cinematográfica.

Para além do encontro geracional e de talentos que o “Ainda Estou Aqui” nos proporcionou a dobradinha Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, conforme já exploramos em outro artigo aqui no Observatório do Cinema (clique aqui para ler), temos que falar sobre essa nova obra desse gigante do cinema nacional e internacional, que é Walter Salles e da profundidade política, filosófica, social e cinematográfica de sua mais recente obra.

Nesse filme, o diretor de ‘Diários de Motocicleta’ (2004) e ‘Central do Brasil’ (1998), defende o poder do cinema como “instrumento contra o esquecimento”, nos entregando uma obra sobre as vicisitudes de uma família durante o período da ditadura brasileira (1964-1985).

(Atenção: antes que algum desavisado pense que estamos falando do filme “Ainda Estou Aqui” que está disponível na Netflix, que tem o título original em inglês “The In Between”, não estamos. É bom deixar claro. Então sigamos.)

Walter Salles em Veneza (AFP)

O Olhar de Salles

Walter Salles, conhecido por seu olhar sensível e por obras que capturam a alma humana em movimento, retorna ao cenário internacional com “Ainda Estou Aqui”, que estreou ontem no Festival de Veneza. Aclamado por filmes como “Central do Brasil” (1998) e “Diários de Motocicleta” (2004), Salles mais uma vez mergulha em questões fundamentais da existência humana, tecendo uma tapeçaria rica em significados filosóficos, políticos e cinematográficos. Neste filme, Salles explora a memória, a identidade e o exílio, oferecendo um comentário profundo sobre a condição contemporânea.

Filosofia: a Memória e a Identidade

“Ainda Estou Aqui” parece se alinhar a uma tradição cinematográfica que explora o peso da memória na construção do eu, semelhante a obras como “Persona” (1966) de Ingmar Bergman ou “Stalker” (1979) de Andrei Tarkovsky. O filme se desenrola como uma reflexão poética sobre a identidade fragmentada. Tal como em “O Ano Passado em Marienbad” (1961) de Alain Resnais, o tempo e a memória são fluidos, intercalando passado e presente, realidade e imaginação.

A narrativa central de “Ainda Estou Aqui” parece explorar a ideia de que a identidade é uma construção instável, formada por camadas de memórias, traumas e desejos. No contexto de Salles, isso se reflete na trajetória de um protagonista que revisita seu passado em busca de sentido, mas encontra, em vez disso, um espelho quebrado de experiências contraditórias. O filme se aproxima do existencialismo ao questionar a ideia de um “eu” essencial, reforçando a noção de que somos apenas um conjunto de histórias que contamos a nós mesmos, ecoando temas comuns na filosofia de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.

Política: o Exílio, a Migração e a Comparação

Politicamente, “Ainda Estou Aqui” dialoga com as preocupações globais, ainda tão presentes, ainda mais aqui na Europa, sobre deslocamento e exílio, temas que Salles também também abordou em “Abril Despedaçado” (2001).

“Ainda Estou Aqui” parece compartilhar uma afinidade temática com “Os Eternos Desconhecidos” (1958) de Mario Monicelli e “Os Deuses e os Mortos” (1970) de Ruy Guerra, na medida em que os personagens centrais são constantemente confrontados com o sentimento de deslocamento e alienação. Embora, em um contexto de um mundo polarizado, novamente em guerra, além de uma Europa que constantemente tem de lidar com a questão de refugiados e imigração ilegal, tais temas soam ainda mais presentes, em diversos contextos e sentidos.

A condição de exílio em “Ainda Estou Aqui” se manifesta como uma metáfora para a situação de milhões de pessoas no mundo contemporâneo, forçadas a deixar suas casas em busca de segurança ou melhores oportunidades. Salles não se limita a uma abordagem apenas crítica; ele adota uma perspectiva humanista, onde o exílio é também uma oportunidade para redescobrir a própria identidade. Há, aqui, um paralelo com “Nomadland” (2020) de Chloé Zhao, que também retrata personagens que vivem à margem da sociedade, mas encontram na estrada um espaço de liberdade e reconstrução pessoal.

Atualmente, vemos a fenomenologia política do ressurgimento de questões como o extremo nacionalismo, a xenofobia, o surgimento e endurecimento de ditaduras de direita e esquerda em todo o mundo, e com esses fatores fantasmas do passado que agora voltam a amedrontar aqueles que, assim como na narrativa do filme, experimentaram a consquência do extremismo ideológico, político e do abuso de poder.

Cinema: o Realismo Poético de Salles

“Ainda Estou Aqui” é uma continuação da estética que consagrou Salles, onde o realismo social se encontra com a poesia visual. O filme faz uso de uma paleta de cores sóbria e de uma câmera que observa sem julgar, mantendo uma distância respeitosa, quase documental, em relação aos seus personagens. Essa abordagem lembra o estilo neorrealista italiano, mas com um toque de lirismo latino-americano, semelhante a Gabriel García Márquez e suas descrições de realidades simultaneamente mágicas e concretas.

A cinematografia de “Ainda Estou Aqui” também pode ser vista como um possível eco de “O Segredo do Grão” (2007) de Abdellatif Kechiche, no sentido de que os gestos comuns, as refeições compartilhadas e as conversas cotidianas tornam-se centrais para a narrativa. Cada cena parece carregar uma intensidade emocional intrínseca, uma tensão entre o que é dito e o que permanece no silêncio. A escolha de Salles de trabalhar com luz natural e locações reais reforça essa autenticidade, criando uma sensação de imersão no mundo dos personagens.

Boa parte dessa profundidade também deve ser creditada a Marcelo Rubens Paiva, autor do livro homônimo que inspirou o filme, que emprestou sua história pessoal de vida e sua própria dor para o longa, relatando os horrores, excessos e o ‘lado B’ do período da Ditadura Militar no Brasil.

Não é difícil de entender porque absolutamente todos os presentes na Sala Grande do Festival de Veneza na noite desse domingo foram às lágrimas, inclusive esse que vos fala.

O Simbolismo da Jornada

A jornada da protagonista em “Ainda Estou Aqui” remete a road movies clássicos como “Paris, Texas” (1984) de Wim Wenders, onde o deslocamento físico serve como uma metáfora para uma viagem interior em busca de reconciliação e redenção. Em ambos os filmes, há uma tentativa de restaurar laços rompidos e encontrar um sentido de pertencimento em um mundo fragmentado.

No entanto, Salles vai além, combinando esta estrutura narrativa com uma reflexão sobre o tempo e a história, similar a “Árvore da Vida” (2011) de Terrence Malick. A narrativa de “Ainda Estou Aqui” é intercalada com flashbacks e sequências de sonho que desafiam a linearidade convencional, sugerindo que o passado está sempre presente, assombrando o presente e informando o futuro.

Uma Resposta ao Cinema Contemporâneo

Em um mundo cinematográfico saturado por narrativas lineares e por vezes simplistas, que se valem em alguns casos mais de recursos audiovisuais do que de bons roteiros e boas interpretações, “Ainda Estou Aqui” se destaca quase como uma obra de resistência e uma resposta aos rumos do cinema de massa contemporâneo.

Embora, na concepção humilde deste colunista, não haja nada de errado em apreciar blockbusters populares de gêneros como filmes de heróis, ficção científica e similares, o cinema sempre foi muito maior do que os meios tecnológicos que usa para contar suas histórias. E deve continuar assim.

Nessa obra, ao abordar questões de identidade, memória, exílio e a busca por sentido, Walter Salles oferece um filme que não apenas reflete as angústias contemporâneas, mas também as transcende, criando uma experiência cinematográfica que é ao mesmo tempo intelectual e emocionalmente rica. Até porque, não adianta ter um filme de extrema militância, que comunique com uma “claque” e fique assim nichado e marginalizado. Cinema não se trata necessariamente de militância, mas de tocar tanto a razão quanto a emoção ao mesmo tempo, de impressionar com a imagem, mas cativar e eternizar com a mensagem.

Assim, “Ainda Estou Aqui” representa um diálogo aberto com o cinema mundial, ecoando a tradição do realismo poético e do existencialismo, enquanto oferece uma crítica até bastante sutil e sofisticada às condições políticas e sociais do presente. Com este filme, Salles reafirma seu lugar como um dos grandes cineastas de sua geração a nível mundial, capaz de capturar as complexidades da vida moderna com profundidade, nuance e uma visão humanista.

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