Parece que o grande Pedro Almodóvar mais uma vez preferiu trazer em seus filmes temas considerados tabus. E não podíamos esperar menos dele. O diretor é conhecido por causar impacto e não temer as críticas negativas. Ainda bem.
The Room Next Door (título ainda sem tradução para o português) foi bastante bem recebido aqui em Veneza, com efusivos 17 minutos de aplausos contínuos, em uma plateia formada em sua maioria de cinéfilos, celebridades, convidados, membros da indústria cinematográfica e imprensa. Mas Almodóvar está realmente acostumado a não receber exatamente a mesma reação do público em geral.
Recordar é viver
Antes de falarmos efetivamente do novo filme, é preciso relembrar que estamos falando do mesmo Almodóvar de Má Educação (2004), que foi recebido com choque e protesto em alguns círculos, especialmente pela maneira como aborda o abuso sexual dentro da Igreja Católica, inspirado em experiências reais e histórias de Almodóvar. O filme gerou debates acalorados e fortes reações de grupos religiosos.
Também precisamos relembrar de A Lei do Desejo (1987), que foi um dos primeiros do cinema espanhol a tratar abertamente da homossexualidade, um tema bastante polêmico na época (e que até hoje há quem tenha receio de abordar) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999): que causou impacto e provocou discussões sobre a visibilidade e os direitos das pessoas LGBTQ+. A obra, que também explora a maternidade e a perda, foi amplamente aclamada, mas não sem causar polêmica entre setores mais conservadores.
Dito isto, o novo e trágico melodrama (que em momentos flerta com a comédia) de Pedro Almodóvar — o 23º longa-metragem do grande diretor, mas o primeiro em língua inglesa — é como um arbusto espanhol de estufa transplantado para um solo estrangeiro e pedregoso, como os cascalhos das praias de Nova York. Esse arbustro murcha e se inclina; a ponto de quase desistir de viver. Mas então, quando floresce, parece um pequeno milagre. E de fato é a própria fragilidade do filme é o que o torna tão deslumbrante, mas que também fará dele uma vidraça vistosa.
O filme trata sobre o polêmico tema da eutanásia, que é ilegal no Brasil e consiste na morte assistida e por intervenção medicamentosa. O próprio Almodóvar durante a coletiva de imprensa do filme aqui em Veneza afirmou que “deveria haver a possibilidade de ter eutanásia em todo o mundo”, e com o seu novo filme, fica ainda mais clara sua posição sobre o tema. E justamente por isso, provavelmente vamos ter boicotes e protestos ao filme no Brasil por uma parte da sociedade. Mas isso não invalida o trabalho realizado, até porque a arte tem o papel de nos “chacoalhar”, nos tirar da zona de conforto, nos fazer pensar e até mesmo mexer com as nossas emoções, em suas mais variadas matizes: que bom que existem diretores como Almodóvar e atores como os que ele seleciona em seus filmes.
Hoje a eutanásia é legalizada em apenas 10 países no mundo, em um universo de 194 nações. Em sua maioria, a legalização acontece em países europeus, como Espanha (país natal de Almodóvar), Alemanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça. Fora do continente europeu temos Colômbia, Nova Zelândia, Austrália e Canadá. Cada um desses países têm condições e requisitos específicos a serem cumpridos para o suicídio assistido.
Enredo e atuação
Tilda Swinton interpreta Martha, uma ex-correspondente de guerra determinada, agora morrendo de câncer cervical e ansiosa para se reconectar com uma velha amiga, Ingrid (Julianne Moore), que se tornou recentemente uma escritora de autoficção aclamada, que foram colegas de trabalho em uma revista de Nova York e por um período curto da vida compartilharam um amante, Damian (John Turturro), mas não se viam há anos.
Adaptado do romance “What Are You Going Through”, de Sigrid Nunez, o filme de Almodóvar leva seu tempo para se estabelecer e criar raízes. O diálogo pontudo e cubista espanhol do diretor parece estranho quando traduzido para o inglês, enquanto a narrativa americana rotineira (milkshakes, caminhonetes, uma casa em chamas na pradaria) traz à mente memórias de “My Blueberry Nights”, de Wong Kar-Wai, que foi fatalmente mal conduzido. É apenas depois que o drama se desloca para o norte do estado de Nova York, especificamente para uma casa brutalista alugada nos arredores de Woodstock, que ele relaxa e se solta a ponto de as interações dolorosas entre Ingrid e Martha começarem a fazer sentido perfeito. É difícil discutir os grandes temas — vida e morte — com os mais próximos e queridos, quanto mais com velhos conhecidos. Percebe-se que as duas ex-colegas estão tateando no escuro, errando, na maioria das vezes tentando compreender o único assunto que importa.
O enredo do filme se desenrola na hesitação de Ingrid em aceitar o pesado e inusitado pedido de Martha, de estar no quarto ao lado quando ela enfim optar pela eutanásia, antes que o câncer em estágio avançado lhe mate. E agora? Aceitar ou não? Concordar ou não com a atitude de Martha? Ser ou não ser, eis a questão?
Martha não sabe exatamente quando vai tirar a própria vida. Ela explica a Ingrid que deixará a porta do quarto entreaberta todas as noites quando dormir. A manhã em que estiver fechada será a manhã em que ela se foi.
A forma como o filme acontece e o elenco se desenvolve durante trama pode ser considerada, para aqueles que não se escandalizarem com um tema tão polêmico, um caso mordaz e terno; uma canção de setembro exuberante em dueto, executada por Swinton e Moore enquanto elas passeiam pelos sebos ou descansam à beira da piscina que não se preocupam em nadar.
O filme se torna emocionalmente mais rico e verdadeiro à medida que Martha e Ingrid restabelecem sua amizade, de modo que a porta fechada e os créditos finais nos deixam sentindo-nos desamparados. Essa tende a ser a maneira de toda boa história e, provavelmente, de todo relacionamento que vale a pena também, porque a carne falha, o relógio tiquetaqueia e é sempre mais tarde do que pensamos.
Almodóvar
O diretor recentemente tem sido marcado por uma preocupação com a morte. O excelente “Dor e Glória” (2019) levou um Antonio Banderas abatido (efetivamente um substituto de Almodóvar) à mesa de cirurgia; “Mães Paralelas”, de 2021, desenterrou os ossos e os mortos da guerra civil espanhola. E, apesar de suas dinâmicas ambientações americanas (ou tentativas de ambientação), “The Room Next Door” continua sua linha de viagem contemplativa.
Ver Almodóvar filmando em locações na Costa Leste dos Estados Unidos, como no Echo Lake Park em Nova Jersey e no alto de Manhattan, é algo intrigante para os fãs de suas narrativas calorosamente compostas e estilizadas sobre mulheres atormentadas por suas próprias memórias no país natal do cineasta. Mas, assim como o material do roteiro traduzido para o inglês, o ambiente não parece ser totalmente explorado, mesmo que as cenas de neve caindo sobre o horizonte de Nova York evoquem uma sensação de aconchego invernal, nova para a filmografia caracteristicamente quente e ensolarada de Almodóvar. Algo se perdeu nessa tradução do espanhol e isso é notório.
Vamos aguardar a estreia do filme em 5 de dezembro nos cinemas para ver o que vai acontecer, em relação à reação do grande público no Brasil e no mundo.