Uma das obras mais esperadas para esse ano já está em exibição nos cinemas, o filme musical A Cor Púrpura. Esta obra explora diversas nuances fascinantes, que certamente serão tema de muitas conversas e discussões.
Quando Alice Walker lançou o seu romance inovador A Cor Púrpura em 1982, ele foi revolucionário na sua representação sutil de sexualidade, raça e gênero. O título abrange 40 anos na vida de Celie, uma mulher negra que vive no sul no início do século XX, sendo um testemunho de sua resiliência e da alegria encontrada diante de extremos infortúnio, como o abuso sexual, físico, verbal e emocional sofrido nas mãos de seu padrasto e marido.
O romance aborda temas de espiritualidade, racismo sistêmico e violência interpessoal, sendo uma celebração do amor e das relações íntimas compartilhadas entre as mulheres, desde o relacionamento profundo de Celie com sua irmã Nettie até a estreita amizade e o desenvolvimento de um flerte com o cantor de blues, Shug Avery.
A complexa narrativa de Walker tornou-se uma parte integral do cânone literário americano, ampliando seu alcance para o mundo do cinema e do teatro.
Um longa-metragem aclamado pela crítica, dirigido por Steven Spielberg, foi lançado em 1985, seguido por um bem-sucedido musical da Broadway em 2005 e um revival musical em 2015, que recebeu muitos elogios. Agora, essa amada história retorna à tela grande com uma adaptação cinematográfica do musical.
Sob a direção de Blitz Bazawule, conhecido pelo seu trabalho em Black Is King, e com a adaptação de Marcus Gardley, poeta e dramaturgo, esta versão de A Cor Púrpura é um comovente espetáculo musical, estrelando Fantasia Barrino como Celie, papel que ela já desempenhou na Broadway de 2007 a 2008.
O elenco é repleto de estrelas, incluindo Taraji P. Henson como Shug Avery, Colman Domingo como Sr. e Danielle Brooks, reprisando seu papel como Sofia, a nora de Celie, após sua participação no renascimento do show na Broadway de 2015 a 2017.
Desde a estreia de A Cor Púrpura por Walker, a história de Celie adquiriu diversas interpretações, evoluindo conforme os meios de expressão e as lideranças criativas mudaram, acumulando elogios e críticas ao longo desse percurso. O romance de Walker recebeu reconhecimento crítico, conquistando o Prêmio Pulitzer em 1983 (tornando-a a primeira mulher negra a receber tal honraria) e o Prêmio Nacional do Livro de ficção no mesmo ano.
Entretanto, a aclamação do livro não veio sem controvérsias, sendo alvo de críticas pela sua representação de famílias negras, em especial de homens negros. Essas críticas ganharam intensidade quando o livro foi adaptado para o cinema sob a direção de Steven Spielberg.
Do livro à tela e ao palco
Assim como o romance de Walker, a adaptação cinematográfica de 1985, dirigida por Spielberg, recebeu elogios da crítica e gerou considerável controvérsia. Estrelado por Whoopi Goldberg como Celie, Oprah Winfrey como sua nora Sofia e Danny Glover como Sr., o filme recebeu 11 indicações ao Oscar, embora não tenha conquistado nenhuma estatueta. Apesar disso, foi um sucesso de bilheteria, arrecadando US$ 94 milhões internamente durante sua exibição inicial em 1985 e se tornando o quarto filme de maior bilheteria naquele ano.
Contudo, a produção também foi fortemente criticada por ter um diretor e roteirista brancos, Steven Spielberg e Menno Meyjes, respectivamente. Essa crítica foi amplificada pela alegação presente no filme de reforçar estereótipos racistas sobre a masculinidade negra, considerada violenta por muitos grupos e defensores. Outro ponto de crítica à obra foi a decisão de Spielberg de suavizar a representação da relação lésbica entre Celie e Shug, um aspecto central no romance. Em uma entrevista à Entertainment Weekly em 2011, Spielberg abordou essas controvérsias.
“A maioria das críticas veio de diretores que sentiram que os tínhamos negligenciado e que deveria ter sido um diretor negro contando uma história negra”, afirmou ele. “Essa foi a principal crítica. A outra crítica foi que eu tinha suavizado o livro. Eu sempre me dediquei a isso. Eu fiz o filme que queria fazer baseado no livro de Alice Walker.”, disse.
Spielberg defendeu sua escolha de atenuar a natureza do relacionamento entre Shug e Celie, justificando-a pela intenção de manter uma classificação para menores de 18 anos.
“Certos aspectos do relacionamento (lésbico) entre Shug Avery e Celie eram minuciosamente detalhados no livro de Alice, e eu duvidei que pudesse receber uma classificação,” comentou Spielberg. “Eu hesitei nesse aspecto. Nesse sentido, talvez eu tenha sido o diretor inadequado para abordar alguns dos encontros mais explicitamente sexuais entre Shug e Celie, pois os suavizei. Transformei algo originalmente extremamente erótico e intencional em um simples beijo.”
A adaptação musical de 2005 estreou com uma abordagem mais leve, impulsionada pelo próprio formato musical e pela inclusão de canções, alterando a atmosfera da história. Em termos temáticos, a produção, com um roteiro de Marsha Norman e músicas de Brenda Russell, Allee Willis e Stephen Bray, focalizava menos no trauma de Celie e nos abusos que ela enfrentou, direcionando-se mais para os passos que ela tomou em direção à sua alegria e empoderamento.
Adaptação contemporânea que dialoga com a atualidade
Para Gardley, adaptar a narrativa de um musical inspirado em um filme baseado em um livro que ele descobriu aos 13 anos – livro que ainda considera seu favorito – significava reconhecer que, embora o filme siga um longo legado do trabalho de Walker, seria uma criação inédita. Em suas palavras à TIME, Gardley afirmou: “Este não é o A Cor Púrpura de Spielberg, não é o musical, não é o livro. É uma fusão de todas essas influências, e, ao mesmo tempo, uma entidade completamente única… O mandato para este projeto foi que todos sentiam que precisava ser A Cor Púrpura 2.0. Assim, o público que amou todas as versões anteriores poderia ter uma experiência nostálgica, mas também queríamos criar algo para uma nova audiência e uma geração mais jovem.”
Ao criar uma adaptação de A Cor Púrpura que se conectasse com o momento presente, tanto Gardley quanto Bazawule retornaram ao material original. Sentiram que era crucial preservar a profundidade dada pelo livro aos pensamentos internos de Celie, expressos em suas cartas a Deus e a sua irmã. Para Bazawule, revelar o diálogo interno de Celie era fundamental para dar vida ao trabalho de Walker na tela, destacando uma distinção em relação às iterações anteriores.
“Voltei e li o livro, e fiquei muito, muito curioso sobre como eu iria contribuir para esse brilhante cânone. Meu trabalho era descobrir qual seria o nosso caminho singular para a história”, afirmou Bazawule. “Foi assim que começamos a explorar o espaço mental de Celie e a ampliar sua imaginação, criando maneiras pelas quais o público pode testemunhar seu ressurgimento através da dor e do trauma.”
Tanto para Bazawule quanto para Gardley, retratar Celie como uma sobrevivente foi essencial. Essa abordagem influenciou as escolhas sobre quais aspectos da história de Celie seriam destacados na tela. Um exemplo notável são as sequências oníricas e teatrais que emanam da imaginação de Celie, como a cena em que ela sonha em cantar e dançar com Shug em cima de um enorme gramofone. Este momento carinhoso reconhece o relacionamento romântico de Celie de uma maneira que o filme de Spielberg não abordou. Essas cenas enfatizam o poder que Celie possui de visualizar um futuro melhor para si mesma, demonstrando uma recusa em deixar que sua vida seja definida exclusivamente pela dor. Assim como o musical do qual se baseia, o filme não se aprofunda excessivamente na violência que Celie enfrenta, embora reconheça a dor que ela suportou; em vez disso, concentra-se na maneira como Celie supera suas adversidades.
Bazawule compartilhou sua perspectiva: “Eu sempre acreditei que um indivíduo é mais livre dentro de sua mente, em termos do que pode ver e imaginar. Eu tomei muitas liberdades em torno de como Celie estava processando o trauma e a alegria, entendendo como amar e quem amar. Muitas vezes, as pessoas rotulam de forma inadequada aqueles que enfrentam traumas e abusos como dóceis e passivos. No entanto, se tivéssemos acesso apenas ao seu espaço mental, acredito que entenderíamos que estão ativamente tentando se libertar.”
Incorporando narrativas pessoais à trama
Gardley destaca que uma parte essencial de destacar a alegria e resiliência encontradas por Celie foi utilizar os números musicais para manter uma atmosfera positiva no filme, mesmo quando o conteúdo era denso. As impressionantes sequências de música e dança, onde a experiência de Bazawule como músico e diretor de videoclipes é evidente, tornam-se os momentos marcantes do filme e a chave para seu núcleo emocional.
“Uma coisa que realmente tínhamos em mente era assegurar que algumas das músicas transmitissem otimismo,” destaca Gardley. “Isso mudou o tom e também nos ajudou a compreender que os personagens, em sintonia com sua própria resiliência, podiam retirar-se e demonstrar sua força.”
O fato de Bazawule e Gardley serem os primeiros criativos negros a dirigir uma adaptação de “The Color Purple” não passa despercebido por eles. Ambos o filme de Spielberg e o musical da Broadway foram liderados por artistas brancos. Para Gardley, trabalhar em um projeto tão integral ao cânone cultural negro foi uma experiência profundamente pessoal. Ele recorda sua família emocionada até as lágrimas ao assistir ao filme de Spielberg, pois a história ressoava com a sua própria. Gardley incorporou essa conexão pessoal, especialmente as histórias compartilhadas por sua bisavó, enquanto trabalhava no roteiro, algo que Walker o incentivou pessoalmente a fazer.
“Ela disse: ‘é importante que você faça da história sua e traga a si mesmo para ela'”, recorda ele. “É um grande presente dar a um artista, e foi isso que eu fiz — realmente utilizei minha própria história pessoal.”
Embora o filme tenha sido profundamente íntimo para Gardley, ele também acredita que os temas de resiliência e força em “The Color Purple”, embora enraizados na experiência específica de Celie como uma mulher negra, são universais e algo com o qual todos podem se identificar. Ele espera que o filme transmita essa universalidade.
“Esta história é universal, retratando a resiliência de todos os seres humanos ao redor do mundo”, declara Gardley. “Quando Alice Walker fala sobre a cor roxa, não se trata apenas da beleza do roxo, mas também da raridade dessa cor, que é também a cor dos hematomas. É a dor e a perseverança, de mãos dadas, que ela nos pede para abraçar e aprender.”
A Cor Púrpura está em exibição nos cinemas.