É um dito comum entre os nerds hoje em dia: que época maravilhosa para ser fã de quadrinhos. As adaptações das revistas de super-heróis da Marvel e da DC são absolutamente as forças dominantes tanto no cinema quanto na TV americana, e outras propriedades nerds (de As Crônicas de Gelo e Fogo, que virou Game of Thrones, passando por filmes cult e vídeo games) estão tomando conta das beiradas deixadas pelo fenômeno dos super-heróis. De fato, que época maravilhosa.
Especialmente em 2016, no entanto, essa é também uma época absolutamente fascinante para ser espectador de filmes de super-heróis. Ainda não vimos X-Men: Apocalipse nem Doutor Estranho. O mais novo representante do gênero é Capitão América: Guerra Civil e seu material promocional combinado com o teor da história dos quadrinhos que ele “adapta”, cria um caso de estudo interessante com o outro grande filme de quadrinhos do ano, Batman Vs Superman.
Em entrevistas recentes, os Irmãos Russo, diretores de Guerra Civil, confessaram (veja aqui) que o interesse em fazer o terceiro filme do Capitão só existiu, para eles, graças à carta branca que a Marvel os deu para inovar e desconstruir o padrão de narrativa e o mito de super-herói estabelecido pelos oito anos de 12 filmes lançados anteriormente pelo estúdio. Ainda citaram Batman Vs Superman como o momento em que Kevin Fiege, o chefão da Marvel Studios, se deu conta de que era mesmo hora de desconstruir esse universo.
Os Irmãos Russo não quiseram dizer isso de uma maneira maliciosa – pelo contrário, colocaram que Batman Vs Superman, em muitos sentidos, tenta destronar a noção do super-herói como salvador, e questionar as suas ações, sua moralidade, sua conveniência e validade política. E foi apenas frente a esse mastodonte de um filme criado por Zack Snyder que Kevin Fiege se deu conta de que essa era a hora da Marvel fazer o mesmo com os seus personagens.
Por que agora?
É curioso pensar porque estamos tentando desconstruir a imagem do super-herói nesse momento da nossa história e da nossa filmografia. Sim, a saturação da mania dos filmes dos justiceiros fantasiados tem um pouco a ver com isso – com quase uma década de universo cinematográfico Marvel, e mais uma infinidade de filmes (fracassados ou não) vindos de outras fontes, incluindo a DC, essa bolha eventualmente teria que explodir. Como a sabedoria popular nos ensina: quanto mais alto, maior o tombo.
Tanto a Marvel quanto a DC estão se colocando à frente desse perceptível tombo, buscando maneiras de mudar os blocos fundamentais de seus universos e de trazer questionamentos novos e interessantes para um público que, quanto mais familiar se torna com a fórmula do gênero, mais busca por algo que fuja dessa fórmula. Nenhuma prova maior disso que o sucesso de Deadpool, uma versão satírica desse mesmo tipo de desconstrução da própria noção de super-herói e dos clichês do estilo.
Um tempo atrás, seria um pouco difícil acreditar que de fato o público fosse tão exigente. E embora, sim, blockbusters sem cérebro como Transformers e Alvin e os Esquilos (!) ainda façam muito dinheiro, uma fatia do público está começando a se acostumar com pratos mais finos, de Mad Max: Estrada da Fúria até a trilogia Batman de Christopher Nolan. O poder das redes sociais tem a ver com isso também, a inflamação de opiniões trazida pela internet e pela reação imediata que filmes, trailers e escalações recebem no ambiente online. Uma Hollywood em que o público manda mais que os estúdios, no final das contas, acabou sendo uma ótima ideia.
A lógica dos heróis falíveis
No entanto, precisamos pensar um pouco mais a fundo do que isso se formos entender por completo esse fenômeno. Um paralelo interessante a se fazer é sobre o recente ressurgimento do cinema de terror, que passou por uma fase ruim com poucos respiros nas últimas décadas – por mais que os primeiros filmes de M. Night Shyamalan, a franquia Pânico e o espetacular Os Outros, de Alejandro Amenábar, fossem pontos brilhantes na escuridão, o gênero (e os filmes de sucesso do gênero) em geral se limitava a produções voltadas para o público adolescente, com pouca profundidade e pouca intenção realmente declarada de assustar.
Isso até uma nova geração de diretores assumir a cadeira, trazendo de volta histórias de assombração que agradaram ao público e à crítica, vide A Casa do Diabo (2009), Você é o Próximo (2011), A Entidade (2012), Invocação do Mal (2013), O Espelho (2013), The Babadook (2014), Corrente do Mal (2014) e A Bruxa (2015). E o que todos esses filmes tem em comum? Bom, de uma forma ou de outra, eles são contos de monstros dos quais não podemos escapar – o truque não e mais matar o assassino, como era na época de A Hora do Pesadelo e Sexta-Feira 13, mas aprender a conviver com ele.
O gênero do terror sempre foi um forte indicador dos nossos medos coletivos como sociedade, e assistir a esses filmes, que quase unanimemente não terminam bem, é constatar que nosso medo hoje em dia é do inevitável. E isso reflete uma mentalidade muito mais permissiva e realista da condição humana, num sentido em que aceitamos o tempo (Corrente do Mal), o luto (The Babadook), a desconfiança (Você é o Próximo) e a obsessão midiática (A Entidade) como a nossa ruína, e buscamos maneiras de abraçar essas falhas para que possamos seguir com nossas vidas.
O que isso significa para a nossa mania por narrativas de super-heróis? Em suma, significa a queda desses ideais que observamos por tanto tempo atuando como os braços da justiça em um mundo em que ela não funciona. Significa a ambiguidade moral e política chegando a um universo que anteriormente não a aceitava. Significa questionar os atos e as consequências dos atos desses justiceiros, e refletir se a justiça que eles fazem é mesmo a que a gente precisa.
Significa também, para os personagens, que o público não deve mais estar disposto a perdoar todas as suas falhas e relevar todos os seus comportamentos condenáveis. Não se trata de fazer dos heróis mais politicamente corretos ou politicamente incorretos, mas de torna-los de fato políticos (e humanos), criar narrativas que são naturalmente mais complexas por isso. Um herói falível em um mundo imperfeito é o equivalente, para os filmes de quadrinhos, ao monstro que não conseguimos matar no cinema de terror. Ambos nos assustam, nos causam estranhamento, e talvez até nos façam querer voltar para um tempo em que as coisas eram mais simples – mas não só esse caminho não tem mais volta, como o universo dos super-heróis está muito mais interessante agora do que jamais foi.
As diferenças
Já deu para entender que, basicamente, é nesse sentido que Capitão América: Guerra Civil e Batman Vs Superman se alinham, né? São ambos explorações de um universo de super-heróis que não é mais só entretenimento, que tem algo a dizer, e que faz uma reflexão importante de ser ouvida sobre o mundo em que vivemos. Esse pulo das adaptações de super-heróis para um nível mais sério e interessante obviamente não iria descer bem com todos os críticos, especialmente aqueles que condenam ambição quando a veem em grandes filmes dos estúdios hollywoodianos (porque sim, esses críticos mesquinhos existem).
A má recepção crítica de Batman Vs Superman, com raras exceções de reviews negativos bem-fundados e que representam uma visão válida sobre o filme como obra estética e narrativa, basearam suas notas baixas na forma como Snyder pareceu “se levar a sério demais”. O curioso é que, quando a Marvel decidiu se levar muito mais a sério do que jamais se levou, em ambos os filmes dos Irmãos Russo até agora, o mesmo massacre crítico não aconteceu – e acreditem, a questão aqui não é só de qualidade das produções, mas se estratégia, marketing e timing.
Primeiro, é notável que a Marvel preparou mais o terreno para esse novo nível em suas adaptações. É admirável o que a Warner e a DC fizeram ao sair imediatamente com um filme que analisava a fundo o mito do super-herói, e do super-herói mais reconhecível da história, com O Homem de Aço. É também uma estratégia mercadológica e artística pouco inteligente – com a Marvel, a construção do universo e a nossa familiaridade maior com ele faz com que o aumento das expectativas e ambições pareça mais natural. Guerra Civil parece o clímax de uma era dentro do estúdio, com Guerra Infinita o seguindo para selar certos momentos e personagens no futuro, e também para mantê-los por perto.
Apesar de Capitão América: Guerra Civil ter também a responsabilidade de se encaixar na continuidade do universo cinematográfico maior da Marvel, o peso em cima do filme dos Russo não se compara as muitas restrições que o ambicioso Batman Vs Superman sofreu por ter a obrigação de ser a pedra fundadora de um outro universo cinematográfico. A narrativa do filme pareceu freada e constringida, em muitos momentos, por essas obrigações, e talvez por isso muitos críticos tenham sentido (não sem pelo menos alguma razão) que o filme não se elevou ao potencial que tinha.
Independente disso ou daquilo, no entanto, o importante é que os super-heróis nunca foram tão absurdamente complexos, humanos, questionáveis e interessantes quanto agora. Como também nos diz a sabedoria popular, embora essa seja mais restrita aos cinéfilos de plantão: o filme que te faz perguntas é muito melhor que o filme que te dá respostas. Batman Vs Superman e Guerra Civil são espetáculos de efeitos especiais com corações de aventuras hollywoodianas, mas lá no fundo são também narrativas inquietantes e incômodas, de uma forma que o gênero nunca se permitiu ser antes.