Parece loucura retomar o projeto iniciado em Esquadrão Suicida após os notáveis equívocos daquele longa, mas a DC põe sua mão no fogo e volta àquele mundo com Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa. Sem medo de elevar os elementos estilísticos do filme anterior à enésima potência, mas com uma condução mais confiante, a nova tentativa se justifica também por valorizar seu elenco de anti-heroínas e antagonistas da lista B do universo do Homem-Morcego, apesar de alguns deslizes.
Para boa parte dos espectadores, Aves de Rapina terá um ar familiar aos dois filmes de Deadpool por utilizar da narração over e quebras da quarta parede, mas se lá eram elementos esperados por conta do legado do anti-herói nos quadrinhos, games e séries de TV, aqui a abordagem de Arlequina (Margot Robbie, de novo se entregando à personagem) é um pouco mais intrusiva e serve, na realidade, como um artifício para amarrar uma trama mais dispersa, composta por acontecimentos que poderiam não possuir relação de causa e efeito alguma sem a atenta montagem de Jay Cassidy e Evan Schiff.
Do início até após a marca da metade, o roteiro assinado Christina Hodson tende a dar muitas voltas para estabelecer a conexão de Arlequina com cada uma das Aves de Rapina, Canário Negro (Jurnee Smollet-Bell), Caçadora (Mary Elizabeth Winstead) e Renee Montoya (Rosie Perez), e para isso abusa de flashbacks e adendos do voice-over. Tanto que quando chegamos aos finalmentes, com as anti-heroínas se unindo para salvar a jovem Cassandra (Ella Jay Basco) das mãos de Máscara Negra (um Ewan McGregor volátil e ameaçador), fica a sensação de que vimos um primeiro ato desnecessariamente extenso.
Vale apontar, contudo, o quanto Aves de Rapina se ancora em sua playlist repleta de nomes deste momento para ganhar um gás tão bem-vindo. De certa forma, o filme de Cathy Yan por vezes remete a um álbum visual, formato que está cada vez mais na moda – e não há vergonha nisso: Lemonade, de Beyoncé, é uma das obras audiovisuais mais impactantes destes últimos anos. A questão que fica, afinal, é se esta estrutura mais livre e baseada em estilo consegue carregar à frente uma história bem consolidada e coerente.
Se há algo que Aves de Rapina prova sobre Esquadrão Suicida, é que aquele filme tinha uma ideia em sua barragem de needle drops e grafismos para apresentar seus personagens e o universo que habitam. Porém na tela e no papel, o longa de David Ayer perdia o componente essencial que faz o carrossel sangrento de Aves andar: verve. Enquanto lá as tentativas de inserir músicas e tiradas soavam totalmente calculadas e decididas em comitê, aqui, apesar de inconsistentes, uma personalidade mais palpável transparece – afinal, a perspectiva principal é a de Arlequina.
E por mais que Aves de Rapina possua de fato o problema mencionado de seu desenvolvimento, é de se admirar que o roteiro encontre bons pontos de encaixe entre as histórias de origem de suas outras personagens e as execute com clareza o suficiente para incluir o que conhecemos delas nas HQs – esta história é mais isolada que o esperado do cânone DCEU / Worlds of DC, mas é coerente com tudo que ocorreu no universo conectado até o momento. Vale dizer que Smollet-Bell, Winstead e Perez também têm bom desempenho nos papéis, mesmo que percam destaque para Robbie.
Independente disso tudo, Aves de Rapina garante uma satisfação mais universal no departamento da ação. Novamente pegando algo que era um ponto fraco de Esquadrão Suicida e injetando uma bem-vinda harmonia entre câmera e dublês nas cenas, Yan não apenas reflete o estilo clean popularizado pela franquia John Wick, como também abraça nestes momentos outras escolhas que remetem até mesmo aos filmes de Batman de Joel Schumacher – num bom sentido! Entre Aquaman e este, a DC está realmente revivendo sua breguice com gosto e capricho.
A pancadaria, além de aproveitar as possibilidades da classificação para maiores, realmente impressiona quando incorpora elementos – literalmente – cartunescos, como o café da manhã de Harley que termina em um hilário acaso, a invasão ao departamento de polícia ou a sequência final no interior e arredores de um parque de diversões. Fiéis à proposta kitsch, a fotografia de Matthew Libatique, o design de produção de K.K. Barrett e a trilha original de Daniel Pemberton trabalham em conjunto com a sólida condução de Yan para entregar algumas das mais estilosas lutas do gênero.
Por fim, Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa não deixa de ser um pouco formulaico e atrapalhado na concepção de seu enredo, mas merece crédito junto às outras produções recentes da DC por escolher uma forma diferenciada o suficiente para trazer esta história e estas personagens ao cinema. Para a DC, não é tanto uma questão do quê, e sim como. Goste ou não da proposta testada por Cathy Yan, a emancipação conquistada pelo selo de quadrinhos no cinema tem definido um novo e promissor direcionamento às adaptações de suas HQs.