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Crítica | Brinquedo Assassino

No ano de 2014, José Padilha lançava seu remake do aclamado sci-fi Robocop, e a produção foi tida como um fracasso, entre outros motivos, por um detalhe específico: na tentativa de atualizar o personagem para novos tempos, o comentário auto-importante sobre capitalismo e tecnologia predominava o espaço antes dividido com uma certa verve que tornava o original de Verhoeven especial. No caso de Brinquedo Assassino, nunca houveram pretensões de tecer qualquer comentário rebuscado, portanto o cenário de um reboot aparentemente voltado às mesmas intenções do longa de Padilha tornou-se preocupante em dobro.

Porém assim como o boneco que o estrela, este novo Brinquedo Assassino esconde surpresas debaixo de sua superfície já banalizada, vide inúmeras produções que, denominadas por alguns como “muito Black Mirror”, pretendem o clichê da “crítica social foda” através de cenários focados na tecnologia. Se o novo boneco, de aparência patética e precária, revela-se uma máquina de matar impiedosa, o longa dirigido por Lars Klevberg comprova ser dono de uma verve cômica como aquela que faltou ao remake do policial cibernético, que eleva um mero slasher ao patamar de divertida comédia de humor negro, uma que além disso tira proveito máximo até de seus aspectos mais genéricos.

Por mais que Brinquedo Assassino desfrute de seus melhores momentos quando não há mais comedimento para a matança e a “trasheira”, é de se surpreender que a re-introdução do boneco matador seja tão eficiente. Para respeitar aqueles que ainda não conferiram a obra, devo manter certos detalhes em um nível mínimo, mas pode-se dizer, de uma forma, que os elementos de magia negra descartados do original não fazem falta nesta versão. De fato, a tradução de Chucky de boneco possuído para um robô mal-programado compele o roteirista Tyler Burton Smith a conceber uma obra essencialmente distinta de sua fonte, instigando com novas dinâmicas e reviravoltas.

A começar pela relação que se forma entre Andy (Gabriel Bateman) e Chucky (dublado por Mark Hamill), um dos pontos mais imediatamente cativantes desta releitura. Programado para defender seu amigo mas sem quaisquer filtros estabelecidos em seu firmware, o que o permite cometer ações que vão desde linguagem obscena a assassinar com requintes de crueldade, o boneco sofre um processo de transformação natural no enredo, gradativamente tornando-se o antagonista da obra sem que também adie os momentos de sanguinolência esperados. Mais do que tudo, a consciência de que Chucky faz o que faz por carinho a seu “amigo” acrescenta uma camada de incômodo muito bem-vinda.

Além disso, Burton Smith acerta ao assumir Chucky como um robô movido a inteligência artificial ao longo da integridade da trama, resistindo à tentação de mimetizar o vilão original e criando aqui uma ameaça nova e, portanto, imprevisível. Seu processo gradual de transformação, inclusive, permite momentos conceitualmente marcantes e promissores, como, por exemplo, sua assimilação da violência contra humanos através de uma exibição de O Massacre da Serra Elétrica 2, assistido por um grupo de adolescentes cuja empolgação legitima, aos olhos de Chucky, aquelas ações como louváveis. É para a felicidade das personagens e do público que o boneco não tenha tido contato com Salò.

Mas é também para a felicidade do público, e dele exclusivamente, que Chucky tenha referências tão inspiradas para aquilo que sabe fazer melhor. O diretor Lars Klevberg, um nome novo no gênero, concebe com seu roteirista algumas das mortes mais espirituosas de um slasher recente. Na verdade, poderia defini-las como gratificantes pela exímia construção humorística das cenas. Cada assassinato aqui surge como uma piada sádica, com progressão inquietante no anúncio das ameaças – um cortador de grama – mas uma frase de efeito catártica – o plano detalhe de um gnomo -, que em sua comicidade permite ao espectador extravasar de imediato a tensão que antes se acumulava.

Dito tudo isso, a versão de Klevberg tem mais sucesso quando abraça uma artificialidade escrachada, seja nas cores saturadas da fotografia, a trilha lúdica e inspirada de Bear McCreary, o rosto borrachudo do boneco animatrônico ou fornecendo situações que desfrutam da imensa capacidade do boneco em controlar outros dispositivos eletrônicos conectados à nuvem, incluindo drones e, pasmem, carros. Em outros instantes mais mundanos, como as interações de Andy com sua mãe (Aubrey Plaza), o longa perde o estímulo, talvez por conta do desenvolvimento raso das relações – o que não pode se culpar sobre o elenco competente, que ainda conta com o ótimo Brian Tyree Henry.

Com o perdão da alegoria, Brinquedo Assassino baixa pela nuvem como uma atualização bem-sucedida, talvez não dos conceitos, mas de sua marca para a atual geração. Se a primeiríssima impressão não é das mais atrativas, o filme prova que sua insistência pelas diferenças existe, na realidade, como forma de se aproximar o máximo que pode da essência dos primeiros filmes. É o melhor tipo de refilmagem por ignorar o caminho mais fácil e ser um produto de seu tempo, em tudo que isso implica, à medida que ainda resgata uma essência reconfortante de slasher descomprometido. Nisso, é condizente com a tecnologia atual, evitando a obsolescência pela capacidade de se reinventar.

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