Não é necessário dizer que Capitã Marvel faz sua estreia no MCU com um peso descomunal sobre seus ombros. É a primeira aventura do estúdio protagonizada por uma mulher, a introdução da heroína mais poderosa do cânone e, ainda por cima, uma ponte entre Vingadores: Guerra Infinita e o aguardado Vingadores: Ultimato, que chega em abril. Em tese, não seria só mais um filme Marvel. Na prática, porém, Capitã Marvel acaba sendo uma das produções mais seguras do estúdio, embora cumpra bem o seu papel de entretenimento.
A trama assinada por Ryan Fleck, Anna Boden e Geneva Robertson-Dworet nos leva para antes de todos os outros longas do MCU (exceto por Capitão América: O Primeiro Vingador). Em um sistema distante, Vers (Brie Larson) é uma oficial kree honrada e poderosa que, em meio à guerra entre os Krees e os Skrulls, raça de alienígenas metamórficos, acaba caindo em nosso planeta na década de 90. Neste período, a SHIELD é uma agência menor, Nick Fury (Samuel L. Jackson) ainda enxergava três dimensões e True Lies era lançado em VHS em vídeolocadoras.
Todos sabem, é claro, que essa tal de Vers é na realidade Carol Danvers, alter ego da Capitã Marvel. Um aspecto bastante interessante deste filme está justamente na estrutura com a qual trabalha sua história de origem: ao contrário. No mundo Kree, ela tem vagas memórias de sua vida em nosso planeta, e em um trecho criativo no qual está sob captura dos Skrulls, vemos estas memórias embaralhadas e fora de ordem. Só saberemos como adquiriu seus poderes, por exemplo, depois da metade do filme, quando ela remonta sua própria história.
Esta busca por sua verdadeira identidade é inicialmente apresentada como um thriller de perseguição na moda de filmes policiais da década em que se ambienta. Logo nos primeiros minutos em que bota os pés na terra, ocorre uma perseguição literal entre Danvers e Skrulls disfarçados a bordo de um trem, com Nick Fury e o saudoso Coulson (Clark Gregg) na cola em um carro. Após este ponto, quando Danvers e Fury já são aliados, há outras situações que remetem aos thrillers da época, com traições e fugas no último segundo.
Embora Capitão América: Soldado Invernal tenha usado o molde do thriller muito bem, é curioso vê-lo aplicado a uma história de origem que, em hipótese alguma, parecia combinar com essa escolha. Porém, apesar de inusitada, a escolha torna a progressão da primeira metade de Capitã Marvel em algo mais instigante que o esperado, tratando cada detalhe do passado da heroína e inclusive tornando as motivações dos skrulls que a perseguem misteriosas. É só a caminho do final que o filme se assenta como o arroz com feijão da MCU.
A falta de memória de Danvers acaba justificando, de certa forma, uma das fraquezas do longa, que é sua protagonista monótona. Sua história de fundo, especialmente com a amiga Maria Rambeau (Lashanna Lynch), tem nuances e instiga nossa curiosidade por quem ela era antes de ficar desmemoriada e poderosa. É o texto, no caso, que deixa a desejar, sem dar à atriz Brie Larson uma verdadeira oportunidade de brilhar – embora, por ironia, ela faça isso literalmente em um ponto climático da aventura. Ainda assim, Larson tem presença.
É normal que se coloque uma exigência sobre o trabalho da atriz, dado seu recente Oscar e o potencial da personagem que encarna. No entanto, a culpa de tal monotonia não é dela e, sejamos francos, ela pode muito bem se destacar no vindouro Ultimato com um texto que a valorize mais. Para ser justo, Visão e Gavião Arqueiro, dois personagens de destaque hoje, também começaram mornos e ganharam mais corpo – o primeiro literalmente. São os roteiristas que jogam seguro justamente nesta que deveria ser a arrancada da personagem.
O elenco de apoio, por sua vez, é enxuto mas garante bons momentos. Como um Nick Fury amolecido, Jackson tem a chance de encarnar o personagem com mais despojo e torna-se um alívio cômico para o longa sem perder a relevância. Lynch, então, com um papel que traz uma camada emocional à história, entrega uma interpretação naturalista, num tipo de registro pouco visto no MCU – Ryan Fleck e Anna Boden, que também dirigem o filme e vem de dramas indies, conduzem os diálogos entre Rambeau e Danvers com um olhar atento às suas interpretações. Goose, por fim, é mais que um gato, rendendo algumas surpresas – não digo mais nada.
Estendendo o elenco, a presença de Skrulls no longa é um dos aspectos mais aguardados de Capitã Marvel, dando espaço a diversas teorias de fãs – até algumas envolvendo os X-Men – e alimentando boa parte da ansiedade acerca deste projeto. Isso, no caso, deve ser um dos pontos mais divisivos do filme por sua abordagem francamente inesperada. Sem dar muitos detalhes, pode-se dizer que os alienígenas deixam de ser a grande ameaça do longa a partir de certo ponto, onde se revela um contexto mais complexo para a trama da guerra cósmica.
Por mais que não seja uma subversão ao nível do que foi feito com o Mandarim em Homem de Ferro 3, são mudanças que podem ser descritas da mesma forma: fazem sentido dentro do roteiro proposto, mas contradizem as expectativas. Pode até ser que vejamos os Skrulls futuramente em outras abordagens, mas aqui são como coadjuvantes de um episódio de Star Trek. Ao menos Ben Mendelsohn está bem como o principal Skrull, Talos, num papel atípico após encarnar um sem número de vilões similares no circuito de filmes hollywoodianos.
Mesmo com esse desvio, Capitã Marvel não deixa de ser previsível. Desde os momentos iniciais, sente-se que nada é o que parece, e os verdadeiros vilões podem ser identificados com um mero exercício de adivinhação. Porém é a falta de personalidade dos antagonistas, genéricos em seus planos e visão de mundo, que prejudicam a trama mais profundamente. Ver este fraco antagonismo após figuras como Killmonger e principalmente Thanos é, no mínimo, algo que rebaixa a experiência a uma série B ou C dentro dessa safra recente.
Também decepcionantes são as cenas de ação e o uso de efeitos especiais no geral. Acostumados a indies minúsculos, os diretores Fleck e Boden entregam algumas das sequências mais fracas de pancadaria dentro do MCU. Filmando lutas com planos fechados, a mais simples troca de socos resulta em uma sequência de imagens confusas, prejudicando as boas ideias por trás delas. Já as lutas aéreas, envolvendo os poderes totalmente evoluídos da heroína, pecam no CGI extremamente falso, tirando o peso da pirotecnia que preenche a tela.
Apesar das fraquezas, Capitã Marvel se garante, mas da maneira habitual aos filmes da Marvel Studios. A fórmula base é cumprida, preenchendo alguns requisitos sem exatamente satisfazer todos. Há uma pequena surpresa para os fãs em sua primeira cena pós-créditos, revelando detalhes cruciais de Ultimato. Mas, apesar da relevância canônica, o filme deve ser um dos últimos de sua espécie dentro de um estúdio que precisa se renovar, especialmente após o reconhecimento de Pantera Negra, que independente do universo que o cerca e da importância social, tomou riscos e tornou-se um marco instantâneo.
Deste não se pode dizer o mesmo com tanta facilidade, e o subtexto feminista, apesar de bem implementado, não alcança a profundidade que a temática racial e cultural ganhavam no filme do herói de Wakanda. Mas com algumas portas enfim abertas, melhores dias podem vir para Carol Danvers – e outras mulheres que integram o cânone do MCU, com Viúva Negra ganhando seu filme solo em breve. Se até Thor teve três chances de conquistar a consideração de novos fãs, Danvers também merece outras oportunidades para se provar.