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Crítica | Downton Abbey: O Filme

Como luxuoso epílogo para a amada série da ITV, Downton Abbey: O Filme poderia resultar em uma obra restrita aos fãs, já que lida com o desenrolar de anos de tramas e um vasto elenco de personagens. O resultado final, no entanto, pode ser facilmente apreciado por todos, mesmo que menções a eventos passados e nomes de destaque sejam frequentes ao longo da duração estendida por duas horas. É como sentar-se em meio a uma sala de estar cheia de convidados que não exatamente conhecemos, mas dos quais podemos captar os anos de história e afeto quase que por osmose.

O carinho pelo seriado original já é palpável desde as cenas de abertura, que acompanhadas por um crescendo ao reconhecível tema musical, re-introduzem alguns dos ambientes da versão televisiva sem qualquer linha de diálogo proferida durante minutos. Esta escolha quase cria um choque a partir do momento em que o longa se assenta no casarão de Downton Abbey, reapresentando dezenas de personagens distribuídos de forma hierárquica pelo local e conduzindo inúmeras conversas paralelas, em um surto de vida que imediatamente injeta ânimo ao drama de época.

O incidente incitante da trama, que seria a visita do casal real à abadia, não importa tanto quanto a oportunidade de oferecer um canto de cisne ao querido elenco, que inclui Hugh Bonneville, Michelle Dockery, Jim Carter, Penelope Wilton, Maggie Smith e muitos outros nomes. São resgatadas questões passadas de cada uma das personagens, algumas das quais ganham novas dimensões ou mesmo se redimem de certas atitudes, em transformações que surgem das circunstâncias da visita da Realeza e seus servos, abalando a estrutura a qual os Crawley e seus empregados estavam acostumados.

Digo que não é um incidente importante porque Downton Abbey: O Filme não está preocupado com os detalhes específicos ou meandros diversos de trama, mas sim em seus reflexos, nas pequenas e grandes mudanças que provocam através das diferentes castas. Este será descrito como um filme de elenco, porém podemos também descrevê-lo como um filme de instituição, consolidando Downton Abbey como um símbolo do Reino Unido. Certas personagens até acomodam um tópico próprio, seja o feminismo, a homossexualidade reprimida ou a possibilidade de ascensão social.

O que se vê ao longo do filme, então, é um esboço da dissolução dos costumes pela qual não apenas a sociedade britânica passaria nas décadas seguintes, mas uma variedade de outros sistemas que, em certo ponto, julgavam-se eternos. Além das ânsias e dúvidas representadas pela personagens de Mary Talbot e Thomas Barrow, Downton como um todo é confrontada pela bizarrice de certas suposições, como por exemplo o momento em que a Rainha Mary (Geraldine James), diante das desculpas pelo nervosismo de um dos mordomos, diz que “não imaginam quão comuns são os comportamentos estranhos à sua volta”.

O texto de Julian Fellowes conduz os desdobramentos individuais de trama com imensa graça, mesmo que nem sempre atinja uma unidade ao tentar acomodar tantas histórias e relações. Os anos de experiência do elenco se refletem, por sua vez, na dinâmica inacreditável em cena, criando o mesmo microcosmo orgânico que fez do seriado um deleite aos fãs. Lady Violet (Smith), um dos destaques do longa, surge como uma metralhadora de boas frases de efeito, desarmando o público a todo momento com sua capacidade de se superar na mesquinhez e falta de bom senso.

É uma pena, contudo, que a direção de Michael Engler opte por uma decupagem televisiva, abusando de planos de reação e esquemas multicâmera, o que acaba proporcionando alguns becos sem saída à montagem, prejudicada principalmente nas transições de cena. Não fosse pela fotografia cinemática de Ben Smithard, que aposta em uma iluminação mais contrastada e a razão de aspecto em 2.35:1, a distinção entre série e filme ficaria apenas na metragem. Isso, por outro lado, joga luz aos méritos da versão televisiva, que conquistou seu público também pela fineza visual.

Um tanto irônico que Downton Abbey: O Filme não transite com tanta fluidez da televisão para o cinema, já que as maiores angústias de suas personagens surjam da sensação de incapacidade de transitar a um novo modelo. Isso, de certa forma, faz dele um projeto mais charmoso e refrescante, que tem em uma emocionante cena com Maggie Smith, sempre forte, o reconhecimento de que toda mudança necessita de uma base e, por conta disso, carregam sempre um pouco do passado consigo. Talvez este epílogo, tão híbrido e inusitado, sirva como sinal de que até os dramas de época pensam no futuro.

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