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Crítica | Entre Facas e Segredos

Entre as marcas do cineasta Rian Johnson, a subversão de expectativas tornou-se uma das principais, e este foi certamente o caso na estreia de Star Wars: Os Últimos Jedi. Naquela ocasião específica, contudo, ela ocorria para o espanto de diversos dos fãs mais fervorosos da franquia, mesmo que para muitos outros tenha agregado ao elemento surpresa com efeitos positivos. Ou seja, Johnson, em seu projeto de maior calibre até hoje, passou longe da unanimidade, mas isto não o impediu de prosseguir em Hollywood com outras ideias ambiciosas.

Apesar de seu caráter subversivo tornar-se uma espécie de piada corrente com certos públicos ainda amargurados com o resultado do longa anterior, o diretor aposta agora em um molde que pede ainda mais por esta qualidade, o do mistério de assassinato feito à moda de Agatha Christie – também conhecido lá fora como o “whodunnit”. Partindo desta cartilha, Johnson se mostra novamente à vontade para puxar o tapete de seus espectadores quantas vezes vier a calhar, com o grande bônus de um elenco envolto em nomes de peso.

A promessa de um jogo de adivinhação no qual todos podem ser culpados dentre um elenco composto por Daniel Craig, Ana de Armas, Chris Evans, Jamie Lee Curtis, Don Johnson e Toni Collette, entre muitos outros, é o aspecto superficial mais sedutor da obra, mas logo aqui Rian inicia seu procedimento para ludibriar o público: o arroz com feijão do whodunnit, listando suspeitos e indagando motivações, fica reservado apenas aos minutos iniciais de Entre Facas e Segredos, passando a ser apresentado de forma muito menos convencional pelo restante da projeção.

A própria decisão do diretor em revelar uma série de verdades ocultas já nos prólogos indica que tal trama será conduzida de outra forma, e o longa não se estende muito até surgir com sua primeira guinada radical. Ao público é concedida uma certa informação que, de tão definitiva, ameaça sacrificar todo o suspense da obra, mas este é apenas o primeiro teste de Johnson com a pressa do espectador em chegar a conclusões. Torna-se claro que, para manter o suspense e a surpresa, a intenção é fazer esquecer tais elementos para, aí sim, tomar todos de assalto.

Até aqueles que antecipam viradas ou estão atentos às intenções dúbias de Johnson, embora sem certeza do que será subvertido a seguir, devem ser embalados pelo tom lúdico que o cineasta cuidadosamente aplica e controla sobre o encaminhamento do filme, do primeiro ao último minuto. Os sets apresentam decorações variadas e um vasto catálogo de objetos de cena, muitos dos quais são integrais à trama; a trilha musical de Nathan Johnson, na mistura de temas de mistério old-school com jazz, acompanha a maior parte das cenas ditando um ritmo delicioso.

O fator lúdico crucial, no entanto, está nas personagens coloridas, com identidades bem demarcadas sem que deixem de exibir camadas adicionais que as humanizam – algumas destas são totalmente independentes do mistério ao centro. O retrato da família Thrombey, tanto individual quanto coletivo, torna a ambientação em câmara infinitamente mais dinâmica, com trocas sarcásticas de diálogo e claros paralelos com o clima político atual dos EUA, englobando todas suas “panelinhas”, porém sem resumir as personagens de acordo com seu posicionamento acerca de tais questões.

Os destaques entretanto são externos a esse círculo familiar duvidoso. Nos dois polos opostos de caracterização estão Marta Cabrera (de Armas) e o investigador Benoit Blanc (Craig), os mais próximos do protagonismo do longa: enquanto a primeira possui o registro mais realista e dramático, usando muito o olhar, o último gloriosamente encarna um sujeito saído de um desenho animado feito no início do século passado, com seu sotaque sulista combinado ao linguajar eloquente de um aristocrata. Duas entregas distintas que são dignas de amplo reconhecimento.

Alguns de vocês devem se perguntar, por fim, por que nenhum resquício de sinopse é discutido aqui. Bom, como o investigador Blanc coloca a certo ponto de Entre Facas e Segredos, comparando o caso que investiga a uma rosquinha com uma lacuna no meio – e uma outra rosquinha dentro dela -, este é um filme cujo apelo se beneficia do mínimo possível de informação prévia, deixando espaço para boas e longas discussões após seu encerramento, mesmo que ofereça também uma conclusão bem amarrada ao grande mistério central.

Entre o ótimo Buscando… e o novo filme de Rian Johnson, Hollywood volta a compreender que um bom mistério é aquele que instiga o espectador a despertar seu detetive interior, sem que este preencha todas as lacunas antes da hora.

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