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Crítica | Green Book: O Guia

A estrada que Green Book: O Guia, do diretor Peter Farrelly, percorre rumo aos Oscars se mostra cada vez mais acidentada, com as diversas controvérsias que surgem no caminho. Criou-se então uma espécie de resistência ao filme, com diretor e roteiristas brancos tratando de racismo em uma temporada na qual no qual há fortes concorrentes como Pantera Negra, Infiltrado na Klan e Se a Rua Beale Falasse, todos realizados por cineastas negros, na corrida pelos prêmios. Tornou-se um daqueles indicados habituais do qual se espera ver o pior, tanto fora quanto dentro das telas, antes mesmo que seja visto.

Embora os trabalhos mencionados acima sejam de fato superiores, fazendo uma abordagem mais aprofundada de temas similares e oferecendo mais em questão de cinema, o longa de Farrelly é melhor que o esperado, mas possui suas inaptidões. Green Book: O Guia adapta a história real de Tony Lip (Viggo Mortensen), um brutamontes de ascendência italiana que é contratado como motorista e guarda-costas por Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista negro, durante uma turnê pelo sul racista dos Estados Unidos. Com pouco dinheiro e uma família para sustentar, Tony se vê obrigado a encarar seu próprio racismo na jornada com Don. Ao menos essa é a premissa.

Não há nada de errado em Green Book: O Guia seguir o ponto de vista do homem branco, sobretudo racista, que lida com os próprios preconceitos. Uma das primeiras cenas do longa, na qual Tony joga fora copos usados por encanadores negros em sua casa, inclusive surge como uma representação bem frontal do racismo enraizado do protagonista. O problema está na forma como o roteiro, assinado por Farrelly, Brian Currie e também por um dos filhos de Tony, Nick Vallelonga, rapidamente dilui ou justifica as atitudes do personagem para que a experiência se torne mais palatável no resto do caminho.

Isso enfraquece tanto a evolução de Tony quanto os eventuais embates com Shirley, que poderiam ser incendiários mas se mostram apenas mornos. Pode-se até fazer um paralelo com o excepcional Ponto Cego, no qual há um incômodo racial sendo abordado ora pela comédia de costumes, ora pelo drama contundente. Em Green Book, temos novamente o branco encrenqueiro, que em certo momento se julga erroneamente “mais negro” que seu companheiro, e o negro que foge da caricatura mas acaba sempre sofrendo as consequências pelas atitudes desmedidas do branco, com tudo aparentemente levando a um inevitável confronto esclarecedor.

Contudo, diferente do que se vê em Ponto Cego, o questionamento dos estereótipos e lugares de fala de cada personagem deixam de ser melhor explorados para dar mais espaço aos momentos feel-good conciliatórios. Sim, um filme sobre racismo, ainda que ambientado no sul norte-americano antes da Marcha dos Direitos Civis, tem como principal objetivo agradar. Seguindo esse rumo, Tony logo passa de sujeito racista a um bobão com coração de ouro, que não tem culpa nem responsabilidade por sua ignorância. Nesse sentido, o humor vem muito mais para amenizar a discussão do que provocar outros questionamentos.

É admirável a intenção de trazer um contexto político a uma comédia dramática odd-couple, na qual personagens que não se encaixam são forçados a conviver, mas é algo que necessitava de uma condução mais nuançada para atingir seu verdadeiro potencial. Peter Farrelly pode ter recentemente experimentado temas mais sérios no seriado Loudermilk, mas o cineasta não cresceu o suficiente para um projeto como esse, especialmente um que parte de uma história cheia de complexidades. Entrega um trabalho palatável mas bastante convencional, com sobe-sons entre uma cena e outra que reforçam uma natureza engessada – a fotografia esmaecida de Sean Porter, de Parece Amor e Sala Verde, ao menos acrescenta algum verniz.

Como se tem dito muito, o que faz Green Book: O Guia funcionar são de fato as interpretações de Mortensen e Ali. Sob os cuidados dos dois, a dinâmica odd-couple ganha não só valor de entretenimento como profundidade, tornando os 130 minutos de duração mais transigíveis que o imaginado. É interessante notar que cada um dos atores opera em um tom radicalmente diferente do outro, uma aposta arriscada que no fim tem sucesso. Enquanto Mortensen encarna a caricatura do carcamano com toda força, esbanjando-se nos gestos e sotaque realçados, Ali compõe com comedimento um homem que, além de culto e reservado, guarda profunda angústia – vale dizer que sua entrega não é uma mera repetição do trabalho em Moonlight.

É um alívio, aliás, ver que Green Book: O Guia ao menos evita ser mais uma história do “homem negro mágico”, que é colocado em posição de destaque apenas para mudar a vida de sua contraparte branca, assim como o longa evita adentrar demais na fórmula do salvador branco. Por mérito de Mortensen e Ali, a dupla é imbuída de alguma humanidade, e qualquer conciliação durante a viagem ganha credibilidade na entrega desses dois profissionais que se mostram sempre tão inteligentes, inclusive na escolha deste projeto. Quem dera encontrássemos a mesma perspicácia em seu roteiro e direção, que na acomodação perderam a oportunidade de eternizar o trabalho.

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