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Crítica | Midsommar: O Mal Não Espera a Noite

ESTA CRÍTICA CONTÉM SPOILERS

Partindo da visibilidade que ganhou com Hereditário e o curta The Strange Thing About the Johnsons, o diretor Ari Aster parece ter se calcado, a princípio, pela força visceral de seus pontos de virada, deixando explícita a transição entre o drama mundano e o terror absoluto. Com Midsommar: O Mal Não Espera a Noite, no entanto, Aster passa a destacar o que, na realidade, confere tanto impacto às suas twists: são essencialmente existenciais. Aqui, mais do que em Hereditário, o âmago da protagonista é o que mais se transforma durante uma obra longa e um tanto perdida, que nem sempre evoca seus significados com sucesso.

Dito isso, Midsommar se inicia com uma virada mais literal, a partir de uma tragédia familiar que ocorre a Dani (Florence Pugh) e a deixa sem chão. Sentindo-se forçado a contemplá-la, seu namorado Christian (Jack Reynor), que já não via hora de terminar o relacionamento, leva a parceira para uma viagem acadêmica à Suécia, onde presenciarão o dia-a-dia de uma aldeia isolada, conhecida por realizar a mítica celebração do Midsommar. À angústia dos assuntos pessoais mal-resolvidos, soma-se a ansiedade diante do desconhecido, de um coletivo que não só fala outra língua como segue diferentes costumes.

Como se não fosse óbvia a existência de uma agenda estranha por trás dos aldeões, que os recebem com cortesia exagerada e logo revelam os lados mais brutais e fatalistas de suas crenças, Midsommar passa boa parte de seu tempo incitando dúvidas no mínimo interessantes. O brutal suicídio de um casal de aldeões, que chegou à idade máxima de 72 anos, choca pela violência corporal gráfica das mortes, mas cria um paradoxo ainda mais perturbador, que vem pela fala de Christian: “nós colocamos nossos idosos em asilos, e isso deve ser perturbador a eles”. Para uns, o fim de um ciclo, e para outros, loucura.

O incômodo cresce nesta proposta de evocar alteridade a quase todo momento por boa parte da duração, intimidadora com suas duas horas e meia. Costumes são representados em cenas de longo silêncio, ou através das peculiares ilustrações que adornam as casas e estábulos do vilarejo. O caprichado design de produção carrega as tintas em cores vivazes, que sob uma fotografia propositalmente superexposta, cria mais outro paradoxo com o interior sombrio da personagem principal, que certas vezes se sobrepõe à beleza externa. Isso, é claro, até Midsommar assumir seus aspectos mais tradicionais de terror.

A virada ao convencional sacrifica a ambiguidade que tornava a metade dianteira de Midsommar em uma experiência tão interessante de imersão, inclusive repetindo truques sem o mesmo efeito particular que criavam à primeira vista. Personagens coadjuvantes passam a cometer atitudes estúpidas demais dentro da lógica antes estabelecida, apenas para que sejam violentamente mortos um a um, e embora esta violência seja evocada fora do quadro a fim de sustentar a perturbação, acaba sendo muito menos eficaz e ambígua que aquela de natureza apenas psicológica, uma que Aster parecia reconhecer como seu grande domínio.

Pode ser algo pré-estabelecido na proposta, mas outro fator que frustra, no mau sentido, é o apagamento excessivo das personagens diante da mensagem e o virtuosismo da direção de Aster, que inegavelmente possui grande talento em compor planos ricos e uma espacialidade detalhada, inclusive sonora, mas que acaba deslumbrando-se demais com seus próprios dotes. A partir de sua metade lisérgica, Midsommar parece mais operar em função de seu diretor e a criação de uma imagem de enfant terrible do que o contrário, ganhando um ar de sadismo gratuito que não se fazia tão aparente em Hereditário.

Nisso, relativizando os dramas de suas personagens até os instantes finais, que ressoam através de uma agressão sensorial ininterrupta, Midsommar talvez se suceda até demais naquela mencionada proposta de alteridade. Caso fosse conduzido como uma obra de terror cósmico, ou levantando maior ambiguidade sobre a procedência ou não das crenças dos aldeões, a insignificância atribuída às personagens e seus arcos poderia, por ironia, alavancar suas angústias e tornar o longa de Aster em uma experiência concussiva. No entanto, a falta de uma abordagem específica o torna apático.

Se Midsommar: O Mal Não Espera a Noite atinge, em seus melhores momentos, uma qualidade hipnótica similar àquela vista nos longas de cineastas mais calcados como Ben Wheatley e Peter Strickland, e um esmero visual que evoca, de fato, algumas inspirações que o próprio Aster assume no conjunto de sua obra, o cineasta ainda tem muito trabalho a fazer na junção do virtuosismo estético com o drama íntimo pungente. O desnível entre os dois resulta em obras de grande impacto visual e visceral, podendo assombrar pela intensidade da violência física e psicológica, mas que falham em solidificar maiores provocações.

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