Algum tempo depois de seu lançamento, o horror Corra! acumulava um grande número de diferentes interpretações e teorias por parte de seus espectadores, que destrinchavam a obra com um entusiasmo raro. Diante do fenômeno, o diretor e roteirista Jordan Peele participou de diversos conteúdos nos quais confirmava algumas leituras e negava outras, revelando no processo os principais truques que contribuíram para o sucesso de seu primeiro filme como obra de gênero e comentário social.
Depois de sua feliz colheita com Corra!, que lhe rendeu um Oscar, a possibilidade de repetir os mesmos truques deveria ser no mínimo tentadora embarcando em seu mais novo projeto, Nós. Não se mexe em time que está vencendo, afinal. Mas agora que o filme foi entregue, pode-se dizer que a nova incursão de Peele é uma obra de ambições muito diferentes às de sua precursora, mais enigmáticas, embora apresente algumas mecânicas similares para chegar onde quer – e nem sempre deixe claro o que isso é.
Desde as cartelas de texto que abrem Nós, é aparente que Peele preza desta vez por uma narrativa mais obscura de horror, estabelecendo elementos da mitologia sem logo entregar a conexão que eles possuem com o resto da trama. A primeira sequência de cenas é composta de situações e lugares aparentemente desconexos: um comercial de TV que promove um evento nacional de caridade, jaulas com coelhos empilhadas no fundo de uma sala e um parque de diversões à beira-mar, na praia de Santa Cruz.
Após esta sequência, Nós ganha linearidade, com uma família que deixa a cidade grande para passar o verão na mesma área litorânea de Santa Cruz. É um lugar ensolarado e idílico, o material perfeito para cartões postais, mas assim como a protagonista Adelaide (Lupita Nyong’o), sentimos que algo não está certo logo de imediato. As cenas iniciais nos deixam com a impressão inabalável de que há algo torto e quebrado debaixo dessa superfície bela e idealmente norte-americana.
Quando a família de Adelaide é atacada em sua casa de veraneio por um grupo de indivíduos idênticos a eles, Nós parece prestes a largar a atmosfera incômoda para dar lugar a um filme de invasão mais objetivo, mas a ação acaba por suscitar mais perguntas e mais provocações. Além das semelhanças tortas, as figuras dos invasores possuem semblantes trágicos que sugerem histórias debaixo de suas cascas quebradas, o que contribui ao tom profundo que Peele almeja.
Para compor a família de “monstros”, Peele usa do fator “uncanny”, ou seja, mostra algo que, por conta da extrema semelhança com a realidade, causa desconforto assim que notamos os detalhes que estão fora de lugar. São soluções simples de maquiagem, com sobrancelhas apagadas e sombras nos olhos, e iluminação, com luzes que desenham seus contornos sem entregar o todo, que tornam as cópias imediatamente perturbadoras. Não por acaso, elas mesmas se denominam como “sombras”.
No todo, o realizador demonstra avanços quanto à construção espacial e atmosférica de suas cenas. Enquanto em Corra! o terror era evocado principalmente pela sugestão, em Nós há um emprego mais direto de técnicas que levam ao choque. O destaque fica para o desenho de som cuidadoso, que trabalha as dinâmicas sonoras de cada espaço de acordo com as perspectivas das personagens, e a mixagem que confere aos monstros uma sonoridade rudimentar e grotesca. A trilha de Michael Abels, carregada em cordas e coros macabros, é outro componente essencial.
Outro aspecto notável, e um que pode dividir a opinião do público, é a implementação do humor em meio ao horror. Peele, que tem grande experiência cômica, tempera as violentas perseguições com doses generosas de gags visuais e ainda frases de efeito. A abordagem nem sempre casa, e tem-se a sensação de que a veia humorística compete diretamente com a brutalidade da violência. Às vezes, Nós comporta-se como um conto de Treehouse of Horror, o especial anual de Halloween de Os Simpsons.
Ainda assim, Nós se faz marcante mesmo quando toma decisões estarrecedoras. A mesma desvergonha pode ser percebida em Nyong’o, que encarna a sombra Red com uma voz rouca e disforme, entregando seu caráter inumano com plena credibilidade. O contraste que faz entre Red e Adelaide já impressiona, mas quando as duas se assemelham pelo comportamento cada vez mais violento, Nyong’o emprega novos e eficientes truques para alimentar uma dúvida perturbadora sobre seu vínculo.
Falando em truques, voltamos ao que fez de Peele um talento chamativo não só no campo do horror, como da comédia antes dele: a manipulação das expectativas. Aqui, ele brinca novamente com o foreshadowing, sugerindo eventos futuros da trama através de objetos de cena ou linhas de diálogo aparentemente banais, podendo ou não nos ludibriar no fim. A brincadeira é divertida, mas torna o saldo de certas cenas previsível – se um objeto é pego por um personagem, ele será usado pelo mesmo personagem momentos depois.
Já a omissão de detalhes específicos durante os flashbacks, que ligam a abertura no parque com o resto do longa, facilita a antecipação de uma reviravolta significativa. Peele cruza uma corda bamba entre manter o espectador adivinhando e mantê-lo informado, e às vezes pende para o últimos dos lados com o perigo de cair. Como com todo bom truque, a necessidade de sabermos como se deu é inevitável, mas não há graça quando sacamos os macetes antes do próprio mágico explicar – se ele explicar.
Apesar de ser um componente chave, a entrega da revelação final, além de acrescentar uma camada fascinante à personagem Adelaide, não entra no caminho das provocações que o realizador traz no centro de sua obra: se para cada um de nós houvesse uma alma quebrada, o que faríamos como coletivo para repará-la? Daríamos as mãos uns aos outros? Qual é a força de uma corrente humana quando nos deixamos abandonar tão facilmente?