Como seres humanos, muitas vezes agimos de forma impulsiva. Alguns desses impulsos são estranhos, inexplicáveis, mas ainda muito humanos. Porém vivemos em sociedade, e até mesmo o menor dos gestos, se feito em público, está imediatamente sujeito ao julgamento alheio. Na peça O Beijo no Asfalto, do controverso dramaturgo Nelson Rodrigues, Arandir socorre um homem atropelado e, segundos antes do sujeito morrer, dá-lhe um beijo na boca, uma pequena escolha que leva a consequências devastadoras.
O breve beijo, testemunhado com repúdio pelos outros pedestres, torna-se o centro de um espetáculo macabro quando um jornalista e um detetive se aproveitam da situação para impulsionar suas carreiras, fabricando uma história que liga o morto a Arandir. Em um jornal sensacionalista publicado no dia seguinte, são feitas insinuações que abalam o casamento de Arandir com Selminha e que enfurecem seu sogro Aprígio, e tudo passa a se acumular em uma gigantesca bola de neve que termina inevitavelmente em tragédia.
Não é a primeira vez que a aclamada peça de Rodrigues é transposta para as telonas, mas a adaptação dirigida por Murilo Benício faz a proeza de soar inédita. Além de marcar a estreia do ator nas funções de diretor e roteirista de cinema, O Beijo no Asfalto faz uma representação única de seu material fonte. Não há alterações perceptíveis no texto – precisa? -, mas tudo é apresentado de uma perspectiva diferenciada, híbrida, que mescla leituras de roteiro com encenações e não raramente apresenta quebras literais da quarta parede.
É uma nova abordagem de um material rico e que continua atual, partindo de um beijo para falar sobre tantas coisas. Discute padrões e normas sociais, o público e o privado, o poder da mídia e ainda papéis de gênero. De forma orgânica, o texto de Rodrigues cria intersecções entre esses diversos tópicos sobre um elenco de personagens com histórias de fundo e motivações complexas, num emaranhado de pontos de vista. Não há protagonista, mas a subjetividade e os segredos de todos eventualmente vem à tona para o julgamento do público.
Dando vida ao fascinante elenco de personagens, há uma lista de nomes infalíveis do nosso cinema: Lázaro Ramos (Arandir), Fernanda Montenegro (Dona Matilde), Débora Falabella (Selminha), Stênio Garcia (Aprígio), Augusto Madeira (Cunha) e mais. O grande destaque, pelo menos a meu ver, é Otávio Müller, que já impressionou este ano em Benzinho e aqui não poderia estar mais diferente daquela figura paterna dócil, exalando perversidade no papel do vilanesco jornalista Amado Ribeiro – seu confronto com a viúva do atropelado, durante o funeral, é de gelar a alma.
Por isso, Benício acerta em cheio ao intercalar encenações com trechos da leitura de roteiro, mediada com espirituosidade pelo diretor Amir Haddad. Nesses momentos, os atores e atrizes se encontram numa mesa redonda, discutindo a essência e o significado de suas personagens, o que enriquece a experiência e não soa tão didático quanto inicialmente esperado. As transições entre estas leituras e as encenações também são bem resolvidas, com trucagens simples, econômicas, mas muito inteligentes, conferindo uma fluidez admirável para o projeto.
Na verdade, com a ação limitada a um estúdio – com cara de estúdio -, muitas dessas soluções visuais se dão através de truques de luz, mudanças na cenografia ou, em pós-produção, através de uma sonoplastia que confere ambiência às cenas – a primeira estadia de Arandir na delegacia é um bom exemplo desses três elementos em ação conjunta. Parte do charme vem do fato que a produção assume que é justamente uma produção audiovisual, deixando escapar elementos que, em qualquer outra ocasião, de maneira alguma deveriam surgir em tela, como microfones boom, trilhos de dolly e operadores de câmera.
Nada mais justo para um filme que, em seu cerne, argumenta sobre a natureza líquida da verdade, em tempos que rumores e fake news são recebidos prontamente como fato. Muito como o ótimo Aos Teus Olhos, que se inspirou em uma peça mais recente – que, por sua vez, tomou como inspiração o trágico caso da Escola Base -, O Beijo no Asfalto questiona a legitimidade atribuída às mídias – lá, o whatsapp, aqui, o jornal. Se o filme, uma mídia que procura imitar o real, deixa suas arestas à mostra, há aí um reforço de que o que vemos não é totalmente legítimo, e o que julgamos real pode muito bem ser fabricado.