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Crítica | O Doutrinador

Adiado por dois meses em virtude das eleições, O Doutrinador marca a primeira adaptação cinematográfica de uma HQ nacional de vigilantes. O anti-herói do título, criado por Luciano Cunha, já faz parte de um universo de quadrinhos publicado pela editora Universo Guará e tem como alvo políticos corruptos. Além de estrear em um momento tumultuado, o filme dirigido por Gustavo Bonafé (Legalize Já: Amizade Nunca Morre) pode abrir novas portas para o cinema de gênero brasileiro, ainda tímido nesse tipo de aventura. Mas será que O Doutrinador se segura por seus próprios méritos?

A trama de O Doutrinador é ambientada em uma versão fictícia do Brasil, com nomes alterados. Após ver sua filha ferida por uma bala perdida e morrer devido à falta de atendimento no hospital, o agente da polícia federal Miguel Montesanti (Kiko Pissolato) decide adotar outra postura diante da corrupção e seus facilitadores: sob a alcunha de Doutrinador, o protagonista sai na caça de políticos corruptos, que tanto desviaram verbas do serviço público que poderia ter salvo sua filha. Com a ajuda da hacker Nina (Tainá Medina) e mantendo seu disfarce dentro da polícia, Miguel torna-se um vigilante.

Apesar da ambientação ficcional, o enredo parte de um mal estar facilmente identificado da realidade brasileira, aquele causado pela corrupção na política. Com a liberdade proporcionada pelo primeiro fator, a adaptação encontra uma maneira de tomar os mesmos rumos extremos da HQ, com a finalidade de provocar catarse nos espectadores sem que algumas problemáticas entrem no caminho. Assim, independente dos paralelos com a realidade, é um projeto que apenas quer proporcionar uma diversão escapista, bem como diversos outros filmes de quadrinhos.

Porém, embora O Doutrinador conte com uma boa finalização visual que confere um clima de HQ, esta adaptação se esquece de coisas básicas que fazem um filme de seu tipo funcionar. Além de possuir um arco muito semelhante ao do Justiceiro / Frank Castle, o protagonista Doutrinador / Miguel é unidimensional – não há nada que o diferencie de tantos outros vigilantes vingativos por aí. Mesmo que nos identifiquemos com sua raiva da impunidade, falta personalidade ao sujeito, que inclusive é interpretado sem muito carisma por Pissolato, claramente limitado pelo material.

Continuando os paralelos com Justiceiro, a sidekick Nina praticamente ocupa a mesma posição de Micro, o ajudante do anti-herói da Marvel. Estas semelhanças não chamariam tanta atenção caso o roteiro aprofundasse mais as personagens para além de arquétipos e criasse motivações diferentes para cada um deles. Por exemplo, Nina, que também cuida de uma loja de HQs, poderia ao menos comentar em cima desses clichês, mas fica limitada a apenas algumas piadinhas aqui e ali. Já o parceiro policial de Miguel, Edu (Samuel de Assis), ocupa uma posição interessante mas também tem pouco a fazer enquanto segue o rastro do vigilante.

Faltou também uma melhor caracterização para os vilões, além de uma figura mais ameaçadora como principal antagonista. Como o governador Sandro Corrêa, Eduardo Moscovis tem um bom desempenho mas em pouco tempo sai de cena, dando lugar a um grupo de outros políticos caçados pelo Doutrinador. Infelizmente, nenhum desses outros vilões tem a mesma presença Sandro e não possuem características marcantes que os distingam entre si, o que prejudica o envolvimento em vê-los caçados um a um. Além disso, são caricatos e suas cenas de conluio parecem sair diretamente de um filme de Austin Powers, com direito a risadas coletivas.

Um problema maior, contudo, fica por conta do andamento da trama, prejudicado por uma série de fatores. O primeiro deles é a previsibilidade, já que O Doutrinador segue à risca a cartilha das histórias de vigilante – só duas semanas depois da estreia de A Justiceira, que já repetia essa mesma fórmula pela enésima vez. Outro fator é a estrutura episódica do filme, provavelmente porque a adaptação foi rodada simultaneamente como longa-metragem e série de TV. Por conta disso, o enredo acaba dividido em capítulos muito marcados, criando ganchos frustrantes em momentos de tensão, como uma temporada da Marvel / Netflix truncada para duas horas.

Ao menos Bonafé e seu co-diretor Fábio Mendonça, com apoio da fotografia de Rodrigo Carvalho e da direção de arte de Margherita Pennachi, entregam um produto visualmente agradável. Tingindo os cenários com luzes coloridas e trazendo elementos cartunescos como a máscara do anti-herói, abraçam suas influências da HQ sem timidez. Os planos aéreos da cidade chamam atenção pela destreza com que são realizados, e os efeitos digitais dão um ar cyberpunk às ruas da fictícia cidade de Santa Cruz. O departamento sonoro também não deixa a desejar, seja na sonoplastia hiper-realista ou a trilha sonora pulsante a la Dredd.

Ainda assim, nem todos aspectos técnicos agradam. As lutas e tiroteios, embora contem com uma equipe preparada de dublês, são mais picotadas que o esperado e às vezes seguem uma decupagem confusa, especialmente nos momentos de perseguição. Portanto, quem espera algo como o gun-fu de John Wick ou a pancadaria fluida de The Raid pode sair decepcionado, a não ser que alguns movimentos de parkour sejam o bastante para satisfazer. Já algo que, por sua vez, causa estranhamento são as canções inseridas em certas cenas, que por vezes destoam do que ocorre em tela.

No fim, O Doutrinador é um produto esteticamente bem acabado, com méritos visíveis em suas facetas técnicas, mas que conta com uma narrativa genérica e falha em acrescentar algo realmente seu ao gênero dos filmes de HQ. Não fosse por seus paralelos com a realidade do Brasil e a língua na qual é falado, o projeto poderia ser facilmente confundido com outros filmes de vigilante pelo mundo. Fica em cheque, aliás, se o projeto realmente será levado em conta como mero entretenimento. Sendo assim, será que O Doutrinador terá pernas para voltar a combater outros tipos de corrupção no cinema?

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