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Crítica | O Escândalo

Em 2016, antes mesmo dos movimentos MeToo e TimesUp tomarem forma dentro da indústria do entretenimento, as acusações e consequente demissão do chefe da Fox News Roger Ailes por assédio sexual acenavam para uma série de mudanças futuras, demonstrando um poder até então adormecido de mulheres em um ambiente tóxico onde ciclos de abusos eram legitimados por aqueles no poder.

Entre as dezenas de vítimas de Ailes, estavam à frente dos holofotes as apresentadoras Gretchen Carlson (Nicole Kidman), que deu início às acusações após uma demissão duvidosa, e Megyn Kelly (Charlize Theron), que depois aderiu à iniciativa de acusação por ter também sofrido uma série de humilhações nas mãos de Ailes (John Lithgow). Em outras palavras, são duas perspectivas específicas e portanto desafiadoras quanto à maneira com que serão postas em tela.

Para o roteirista Charles Randolph, adotar o mesmo estilo de seu trabalho anterior em A Grande Aposta soou como a melhor ideia, desconsiderando que, naquele projeto, as tintas de comédia eram mais apropriadas e melhor reproduzidas pelo cineasta Adam McKay. Não é necessário dizer então que, se O Escândalo tem êxito em replicar esteticamente o formato, esta não é exatamente a forma mais adequada com a qual recriar essas experiências tão íntimas e traumáticas.

Um dos trabalhos do roteirista é imaginar as vozes de suas personagens sem que estas soem como a sua própria, e esta é novamente a grande limitação de Randolph: todos os diálogos soam esquemáticos e padronizados, mesmo que contem com uma ou outra fala incisiva. Este não é necessariamente um problema de gênero, embora seja fácil assumir que sim, mas uma falta de flexibilidade por parte do autor, que ainda deve se provar além deste molde que o consagrou.

A escolha pelo diretor Jay Roach, mais conhecido por comédias como Entrando Numa Fria e Austin Powers do que seus medianos telefilmes políticos exibidos pela HBO, como Recontagem e Game Change, é outro aspecto que se prova discutível, já que o cineasta não chega às decisões de linguagem de uma maneira espontânea, mais parecendo guiar-se pelo propósito de imitar o trabalho de McKay em A Grande Aposta e Vice do que concebendo as melhores ideias para cada cena.

Se a condução de Roach peca pela aleatoriedade com que adota truques similares aos de McKay e o fraco aproveitamento da fotografia de Barry Ackroyd, que parece propositalmente assumir uma estética televisiva com suas luzes carregadas e aspecto digital, O Escândalo se vê realmente prejudicado por sua estrutura final, pulando entre pontos de vista ora para oferecer pequenas esquetes complementares, ora para até mesmo explorar a visão do próprio Ailes sob fogo – algo que ainda não compreendo.

Complementando os dois pontos de vista principais de Carlson e Kelly, temos a fictícia Kayla (Margot Robbie), que de certa forma sintetiza os relatos de diversas outras vítimas sob uma alcunha só e serve como um caminho para que Roach e Randolph traduzam certos acontecimentos em dramatizações mais objetivas, sem exatamente pensar em como este terceiro ângulo ficaria posicionado dentro do quadro geral – isto é, além de poder oferecer um momento de catarse que amarre tudo de forma limpa.

O núcleo de Kayla aponta ainda uma ingenuidade grosseira por parte dos realizadores, indagando que uma funcionária em sua posição dentro deste escândalo poderia facilmente reestabelecer sua carreira na indústria televisiva, como se apenas sua honra a tornasse invulnerável a futuros abusos e injustiças no ambiente de trabalho. Isso que, como o próprio projeto aponta, tal história precede a queda de tantos outros tiranos na mesma mídia – ou seja, é uma falsa catarse.

No caminho oposto das falsidades na narrativa, está o trabalho exemplar do grande elenco, em especial Theron como a resiliente Megyn Kelly. Se há algo que Roach emprega muito bem, são os closes colados no rosto da atriz sul-africana, que é capaz de entregar uma interpretação repleta de sutilezas mesmo debaixo da maquiagem enrijecida, além de capturar a qualidade vocal exata da verdadeira Kelly – o que facilita a imersão nas cenas em que é incluída em imagens reais.

Kidman e Robbie possuem participações menores, mas também fazem boas escolhas nas composições das personagens – Robbie passou meses pesquisando e estudando comportamentos e perspectivas de jovens espectadoras da Fox News -, nunca as diminuindo por suas inclinações políticas. Já no papel de Ailes, Lithgow tem o difícil equilíbrio de transitar entre uma maldade explícita e outra mais velada, disfarçada de apoio, característica que a própria Kelly apontou em seu interessante vídeo “A Response to Bombshell”.

Mesmo que de forma imprevista, então, O Escândalo acaba por reforçar aquilo que queria: o esforço de suas mulheres e a importância de sua resistência e união frente aos abusos sofridos. No entanto, as simplificações feitas no roteiro ignoram, de uma forma falsamente otimista, as reais dimensões do problema em seu centro, que vai muito além de uma só rede ou uma só indústria – sim, os letreiros finais reconhecem isso, mas o filme em si não evoca esta escala.

Espera-se ao menos que a presença da obra nesta temporada de premiações contribua com uma conscientização destes tópicos às mulheres ainda excluídas desta conversa, independente de suas bandeiras ou agendas.

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