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Crítica | Obsessão

Há quase dez anos sem conceber um roteiro seu, o irlandês Neil Jordan volta agora a dirigir um material próprio com Obsessão, thriller estrelado por Isabelle Huppert e Chloë Grace Moretz. Mas o que inspiraria um cineasta de seu porte, responsável por obras como Traídos pelo Destino e Entrevista com o Vampiro, a fazer este projeto, não fosse a oportunidade de trabalhar com duas ótimas atrizes? A dúvida persiste muito depois dos créditos de Obsessão rolarem, já que debaixo da bela superfície e da aura prestigiosa se encontra um filme de stalker que persegue a cartilha até perder o último vestígio de identidade.

Isso pelo menos condiz com a própria trama, na qual a jovem garçonete Frances (Moretz) devolve uma bolsa esquecida no trem à sua dona, Greta (Huppert), mulher aparentemente dócil com a qual inicia uma breve amizade. Breve pois Frances, convidada à casa da nova amiga, logo descobre um armário cheio de bolsas idênticas à qual devolveu antes, com números e nomes anotados em cada uma delas. Desde então, fica claro que Greta não é exatamente uma mulher normal, e Frances decide se afastar dela – sem contar com o fato de que a estranha passará a persegui-la seja aonde for, revelando-se como alguém completamente diferente da pessoa amigável de antes.

Embora diversos exemplares do gênero já tenham apresentado suas premissas com um toque de erotismo na relação entre perseguidor(a) e perseguido(a), Obsessão promete inicialmente uma perspectiva diferenciada desta relação ao portar-se como um filme de romance clássico. Ao som de Where Are You, canção romântica da década de 60 na voz de Julie London, o prólogo alterna entre Frances e Greta em suas ocasiões cotidianas, criando antecipação pelo encontro das duas como naqueles romances nos quais os amantes são unidos por uma eventualidade, como se fossem escritos nas estrelas. Por conta disso, o primeiro ato de Obsessão conta com algum frescor.

Dos enquadramentos escolhidos pelo diretor Jordan, com lentes objetivas que diminuem a profundidade de campo entre as atrizes, à iluminação quente de Seamus McGarvey, os primeiros encontros das duas mulheres são conduzidos com a mesma tensão romântica, mesmo que se trate de uma amizade. Os diálogos são melosos e idealizados: prometendo a Greta que não a abandonará, Frances diz que seus amigos falam que ela é como chiclete, “não desgruda”. De tão rápida e intensa, a proximidade que se cria entre as duas torna-se incômoda, não pela disparidade de idade, mas pela antecipação de que algo irá eventualmente separá-las – a descoberta das bolsas, no caso.

A partir do ponto em que o espectador possa se ver engajado com a relação das personagens e como irão lidar com tal distanciamento, Obsessão assume com rapidez a forma de thriller genérico de perseguição. A figura de Huppert é praticamente transformada em um sub-Michael Myers, desfocada ao fundo de planos ou vista paralisada do outro lado da rua, isso quando não ganha os dons de superforça, teleporte e invisibilidade convenientes ao roteiro. O momento mais emblemático de ameaça é justamente o mais banal, quando Greta cuspe um chiclete nos cabelos de Frances, resgatando a frase da última com ironia e simbolizando ainda a obsessão de uma pela outra com o grude da goma nos fios de cabelo.

Infelizmente, a antagonista acaba se provando decepcionante aos padrões de Huppert e thrillers em geral. Descobre-se, em certo ponto, que Greta era enfermeira, explicando sua posse de sedativos e seringas, mas seu passado e experiências continuam nebulosos, ou melhor, nonsense até o final do longa: ela é basicamente má por ser má. Enquanto a decisão de manter o vilão misterioso seja condizente e merecida em alguns dos melhores terrores, aqui ela serve apenas para justificar a falta de sentido, que ainda busca se sustentar por uma pretensa atmosfera onírica, chegando até a apelar para uma sequência de sonho gratuita que não deve enganar ninguém – mesmo que o ponto fosse, por algum motivo, enfatizar quão bizarra e arbitrária a realidade se tornou para Frances.

Obsessão é um thriller trapaceiro – todos são, de certo modo -, e tal afirmação poderia vir no bom sentido. Mas se a acertada montagem de Nick Emerson é capaz de enganar expectativas por méritos próprios, em especial nas últimas duas cenas, e as estrelas Huppert e Moretz desafiam seus arquétipos com entregas bastante expressivas e espontâneas, o enredo fraco não faz jus à tensão que se constrói nos outros aspectos da obra, derrubando todo o castelo de cartas. Há, espalhados pelo texto, sinais de um delicioso humor irônico, como quando Greta diz à funcionária de um canil que a expressão “colocar para dormir” trata-se de um “eufemismo terrível”, mas Jordan não investe o bastante nesta autoconsciência para apimentar o processo.

O filme de Jordan talvez tivesse maior êxito caso abraçasse a comédia de erros, subvertendo expectativas levemente por comentá-las, não apenas reproduzi-las. O humor mórbido já estava lá. Isto, no entanto, deve ter ocorrido apenas no plano dos sonhos. Na realidade, os erros esvaziam uma premissa que, por mais repetida que seja, ainda apresentava grande potencial de entretenimento, ainda mais com atrizes do calibre de Moretz e principalmente Huppert – Maika Monroe, de Corrente do Mal, também agrada como a melhor amiga de Frances. No mais, por conta dos talentos do elenco e de sua equipe, Obsessão é uma galhofa com classe, mas como sua antagonista, não possui uma identidade consistente.

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