Desde o anúncio do thriller de máfia Rainhas do Crime, criou-se em volta do projeto certa curiosidade por conta de sua junção de partes inusitadas. O material fonte, originalmente intitulado The Kitchen, é uma HQ de Ollie Masters sob o selo DC Vertigo, o mesmo marcado por obras visionárias como Watchmen e V de Vingança. No comando do filme, então, está a diretora Andrea Berloff, fazendo sua estreia após ganhar alguns holofotes por sua indicação ao Oscar de melhor roteiro com Straight Outta Compton. Já no elenco, os papéis de destaque são ocupados, em parte, por dois nomes cômicos ainda incomuns no terreno do drama: Melissa McCarthy e Tiffany Haddish.
O projeto, no entanto, tem caminhado para sua estreia com pouquíssimo destaque dado o seu potencial e conquistas – em pleno século XXI, uma cineasta no comando de filmes de gênero mainstream ainda é algo raro de se ver. O longa, afinal, poderia catapultar Berloff rumo a outros projetos mais ambiciosos. Infelizmente, Rainhas do Crime é, na falta de outra palavra, uma bagunça. Antes de tudo, faltou à diretora e roteirista uma pré-avaliação de suas intenções dentro do subgênero dos filmes de máfia e de uma agenda de empoderamento feminino. A moral cinzenta típica a tantas histórias de gângster acaba por chocar-se diretamente com uma mensagem mais bem-intencionada.
Por conta desta disputa ininterrupta entre intenções, todos os lados são enfraquecidos. Na trama, três mulheres, Kathy (McCarthy), Ruby (Haddish) e Claire (Elizabeth Moss), veem seus maridos mafiosos presos e portanto são forçadas a encontrar uma maneira própria de sustento. Com a parcela ínfima que ganham de sua própria família criminosa, o trio constrói um caminho até o topo da casa pelo controle de Hell’s Kitchen. Neste processo, as protagonistas teriam, naturalmente, de tomar decisões difíceis e moralmente questionáveis, porém o roteiro de Berloff observa tudo isso com um maniqueísmo exagerado, que as torna em heroínas praticamente instantâneas apesar de suas ações.
Talvez nas HQs originais, a proposta simplificada seja eficiente sob uma chave mais cartunesca, mas Berloff, apesar de dar início ao filme com um vibrante plano aéreo que dá a Nova Iorque uma aparência exagerada de Gotham City, com neons elevados e efeitos digitais adicionais, fica no meio do caminho quanto ao tom que usa para esta adaptação. Se a presença de atrizes cômicas e o retrato dos gângsteres homens não poderiam ser mais gritantes, são apenas detalhes entre outros bastante soturnos e realistas, como a violência doméstica e sexual ou a violência gráfica que provém dos diversos assassinatos retratados no longa, que sugerem a busca por um registro crível.
A máquina mafiosa, com todas suas engrenagens e implicações morais, é no entanto subdesenvolvida demais para garantir esta credibilidade. Personagens morrem de todos os cantos pelas mãos do trio principal, porém não há sensação de causa e efeito imediatos entre cada uma das cenas, tornando o próximo corte para outra personagem alvejada anticlimático e inconsequente. Além disso, a montagem seca de Christopher Tellefsen é o fator que mais acentua a confusão tonal criada por Berloff entre seu roteiro e direção, que por vezes não conversam de forma alguma. Não raro uma morte chocante é sucedida diretamente por um instante cômico, e vice-versa, anulando qualquer impacto dramático.
Há, ainda, severas limitações dramatúrgicas das quais Berloff sofre, refletidas em sua direção de atores e a blocagem e decupagem de cenas. Enquanto McCarthy e Moss aparentam à deriva mas usam seus músculos dramáticos para sustentar cenas inteiras, Haddish, que até hoje não protagonizou um projeto dramático, está visivelmente mal-dirigida e traz ao material diversos tiques e vícios, como sua sobrancelha esquerda inquieta e um esforço exagerado em criar um semblante entristecido – repare na primeira visita dela e McCarthy ao subchefe da máfia irlandesa. Enquanto isso, nomes mais realizados como Bill Camp (The Night Of) e Margo Martindale (The Americans) encaram papéis unidimensionais.
Quanto à encenação, instantes básicos de “small talk” são montados e decupados de maneira idêntica aos mais diálogos emblemáticos, sem movimentos de câmera ou planos que elevem a tensão dramática. Exceto pelo trabalho confiável da fotógrafa Maryse Alberti, em especial nas cenas noturnas, não há elementos que chamem a atenção à tela quando nem mesmo as interpretações se destacam. Ainda assim, este seria apenas um filme de gângster sem tensão, sem potência dramática ou grandes interpretações caso também não fosse, em um certo nível, moralmente questionável. O longa vê, na repetição dos erros e atitudes masculinas, uma bela forma de empoderamento para suas protagonistas.
Com isso, a glamourização excessiva do crime, agora cool sob o comando das personagens, toma conta de Rainhas do Crime e gera uma obra completamente desprendida do peso de sua violência, embora diga uma vez ou outra que devemos nos abalar com o que ocorre em tela. O uso de needle drops animadas, seja com Barracuda de Heart ou The Chain de Fleetwood Mac, denuncia as intenções gerais de Berloff em transformar a história sanguinolenta de suas protagonistas em entretenimento crowdpleaser, e o resultado deve ser avaliado de acordo, apesar de discutível. Mesmo assim, Rainhas do Crime falha em construir seu próprio império. Que tenha, ao menos, aberto algumas portas.