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Crítica | Rasga Coração

Em uma das primeiras cenas de Rasga Coração, adaptação da peça homônima de Oduvaldo Vianna Filho, Custódio (Marco Ricca) e Nena (Drica Moraes) discutem as despesas deixadas por seu filho Luca (Chay Suede), que seria o pesadelo encarnado de alguns pais: ativista, vegano e completamente rebelde. O pai, que era ativista quando jovem e agora ocupa um cargo burocrático no trabalho, abre mão de investimentos básicos para sustentar os gostos particulares do filho, e faz isso de bom grado – mas até quando?

Essa tensão percorre todo o filme, dirigido por Jorge Furtado (Saneamento Básico: O Filme). Em paralelo ao dia a dia atual de Custódio como pai, acompanhamos cenas de sua carregada juventude militante, apelidado como Manguari Pistolão (João Pedro Zappa). No caso de quem não conhece o material original – que nem esse cara aqui -, só passamos a saber disso um pouco mais à frente, numa decisão simples mas muito inteligente do roteiro, assinado por Furtado, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, que transpõe a trama original escrita na década de 70 para os dias atuais.

Contando com a montagem dinâmica de Giba Assis Brasil para tecer comparações diretas entre gerações, a adaptação de Furtado ganha grande peso emocional e satírico por ser tão próxima às realidades de muitas famílias de classe média, especialmente aquelas cujos integrantes mais jovens podem ser descritos mais precisamente como “de humanas”. Contudo, por mais que existam fortes elementos de sátira inseridos no texto e até mesmo na execução visual do longa, Rasga Coração nunca recorre a caricaturas e nem debocha de seus personagens.

Cada personagem pode de fato possuir uma personalidade muito marcada, alguns até sendo completos estereótipos, mas neles há sempre uma dimensão adicional prestes a se revelar. Mesmo o pai de Custódio, jocosamente apelidado de 666 (Nélson Diniz) e inicialmente contrastado como um sujeito muito mais ríspido que o filho em suas funções paternas, mostra uma compreensão inesperada a certo ponto, como se reconhecesse sua rispidez como uma obrigação sem sentido. Neste caso, a tipificação das personagens ajuda também a universalizar os sentidos do enredo com mais eficiência.

Por mais que o foco seja na figura de Custódio, que rumina sobre seu próprio passado e passa por uma desconstrução, pode-se dizer que novas camadas de Luca ficam aparentes no processo. Ambos “fogem do poder” em suas respectivas juventudes, desacreditados com o sistema que impera, mas não poderiam estar mais distantes pelos diferentes contextos vividos. Embora a obra nunca desmereça o ativismo de Luca, nota-se que, do pai ao filho, essa rebeldia perde significado, tornando-se muito mais uma atitude simbólica ou mesmo recreativa.

Na justaposição entre passado e presente, percebe-se uma diferença gritante entre os ativismos de ontem e hoje. Enquanto Custódio põe a cara a tapa em plena ditadura militar, sofrendo duras consequências por seus atos, Luca e seus amigos militantes depredam sua escola particular quase como uma recreação, um rolê. O longa também faz provocações oportunas sobre a falta de alteridade no ativismo jovem de classe média, que por vezes exclui outras vozes e deixa de rever estratégias. Por isso, a figura de Talita (Cinândrea Guterrez), uma jovem negra e filha de um antigo camarada de Custódio, denota a falta de interseccionalismo na causa dos colegas quando desvalorizam sua fala – e uma profunda ignorância deles quanto às heranças da garota.

Assim, quando o roteiro passa a situar Talita a Luca no mesmo espaço, fica cada vez mais perceptível que o problema do rapaz não é a rebeldia, mas sua falta de perspectiva individual. Enquanto ele despreza a ideia de ir à faculdade ou prestar vestibulares, a garota vê tais oportunidades como um sonho – ainda assim, o desejo dela de se adequar ao sistema não faz dela menos militante e nem anula suas heranças culturais e políticas. Apesar do engajamento político, Luca tem o privilégio do tempo, do conforto, e parece driblar obrigações para que isso continue assim.

Dessa maneira, vai se revelando um estudo de Luca como um jovem que adia a chegada da vida adulta, vendo sua postura ativista mais como o próprio objetivo do que um caminho para seu futuro. Por isso, é de uma grande beleza ver que o pai, inicialmente a figura acomodada e careta, reencontre suas formas de expressão e seja aquele a tirar o filho da acomodação. Em uma sequência que praticamente cola duas discussões familiares, Custódio muda sua atitude e expõe seus pontos de vista num diálogo estarrecedor, revelando-se um sujeito muito mais observador do que seu filho acreditava.

Porém, mesmo com sua densidade temática e tudo mais, o filme de Furtado consegue ser muito mais bem-humorado do que se espera. O diretor acerta o timing das situações com seus atores, que, diga-se de passagem, estão excelentes. Ricca, Moraes e Suede formam uma tríade poderosa em cena, cada um dominando bem seu papel. Enquanto isso, em flashbacks, Zappa faz um bom trabalho como o jovem Custódio, e George Sauma traz uma camada de angústia ao escandaloso Lorde Bundinha – suas cenas, no entanto, são as mais teatrais em registro, e acabam destoando das demais.

Ambientado na maior parte do tempo dentro de um apartamento, Rasga Coração se apropria de momentos domésticos muito comuns para falar sobre o mundo, da “imensa solidão” de gente que não teve escolhas, da crença dessas mesmas pessoas de que tudo vai melhorar. Mas outra coisa fica bem clara: é justamente pelo mundo ser cheio de velhos problemas, que o novo tem tanto a aprender com o velho. No caso, o velho pode vir na forma aquele pai careta, cansado e cheio de dores no corpo, mas que com certeza viveu e aprendeu muito mais do que ele mesmo imagina.

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