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Crítica | Socorro! Virei Uma Garota

Socorro! Virei Uma Garota é o tipo de título que sintetiza a premissa de seu filme com exatidão. Júlio (Victor Lamoglia), o protagonista infeliz desejando popularidade em meio aos colegas de escola, faz um desejo a um estrela cadente e torna-se, indesejadamente, uma garota, Júlia (Thati Lopes), agora correndo contra o tempo para reverter a situação. É também o tipo de título que anuncia possibilidades diversas para a comédia, podendo tanto guardar intenções mais conservadoras com sua premissa e tanto usá-la para abordar tópicos fora da tradicional curva. Como o protagonista, o filme dirigido por Leandro Neri e escrito por Paulo Cursino vive um pouco do melhor e do pior de dois mundos.

A inconsistência do projeto reflete-se desde o princípio em seu tom. Durante todo o trajeto de Júlio / Júlia, o que começa com um flashback com fortes ares infantojuvenis e melosos, depois vai ao besteirol grosseiro e, por fim, faz uma curva fechada para a comédia dramática – com toques de ficção científica e viagem no tempo, vale dizer. Essa constante renovação que viria a calhar em tantos outros projetos similares, desde os mais assumidos na comédia – Sexta Feira Muito Louca – a outros mais matizados – Your Name – aqui soa como indecisão, já que cada uma das intenções parece mais interromper a anterior do que continuá-la com organicidade.

Em meio a tantos registros propostos, o roteiro de Cursino navega de forma constante entre o escracho e a sensibilidade, um humor destrutivo e outro mais reparador. Como Júlio acorda, após o seu desejo, em uma realidade paralela como Júlia, com tudo aquilo que o cerca devidamente alterado, desde relações pessoais até o cenário político internacional, Cursino não evita – e nem poderia evitar – tópicos determinados sobre gênero e identidade. Porém se o roteirista reconhece a delicadeza de tais temas, como a discriminação de gênero e ainda a aceitação da homossexualidade, ele também deve conciliar este olhar com o humor fácil – e por vezes nocivo – que se espera deste tipo de produção.

Portanto, a última investida do longa em território dramático, tratando da perda de um ente querido de Júlio que se encontra ainda presente na realidade de Júlia, chega como mais outra intenção completamente destoante do roteiro, que agora faz um malabarismo para assimilar tudo que está sendo proposto no papel. É um tanto bizarro, inclusive, ver como outras subtramas anteriores são agora resgatadas com maior intensidade diante desse novo mote pessoal do(a) protagonista, como se disputassem espaço. Ao menos, pode-se dizer que a obra ganha no processo um coração, e permite ao elenco desenvolver novas facetas de suas personagens, evitando clichês mais rasteiros como aqueles vistos em Eu Sou Mais Eu.

Destaca-se, é claro, o trabalho de Thati Lopes, que fez seu nome nos esquetes do Porta dos Fundos e aqui demonstra grande potencial, entregando com confiança até onde o roteiro oscila. Apesar da óbvia composição inicial da personagem, engrossando sua voz e exagerando trejeitos que nem mesmo sua encarnação anterior possuía, Lopes ganha nossa simpatia com uma entrega radiante, plenamente consciente do projeto que estrela e disposta a elevá-lo. Além dela, Leo Bahia encontra o equilíbrio certo no papel do melhor amigo Cabeça, e Nelson Freitas, cujo nome é frequentemente associado ao Zorra, é capaz de revelar grande delicadeza no papel do pai que se despe de sua imagem de “machão”.

É uma pena que o diretor Leandro Neri não pareça tão consciente de seus próprios méritos. Em contraste com outras produções de cunho similar, Neri demonstra-se apto de uma encenação um tanto mais arrojada – principalmente em como atores e atrizes entrosam – e interessado por algumas quebras formais, criando algumas boas cenas de montagem onde adota uma linguagem mais típica a videoclipes e produções de internet do que o que se vê nas neochanchadas de, digamos, Roberto Santucci, que ocupa aqui o cargo de produtor executivo. No entanto, Neri ofusca seus méritos com algumas escolhas muito menos sofisticadas, em especial no uso invasivo da trilha sonora, ininterrupta e didática.

Por mais que pareça um detalhe banal, é este mau gerenciamento da música que confere a Socorro! Virei uma Garota um ar mais vulgar mesmo quando não se propõe a sê-lo. Uma bela conversa de pai para filha sobre identidade e sexualidade é pontuada por deixas musicais cômicas, como se o longa estivesse constrangido do que ele mesmo se dispôs a dizer. Quando este elemento é resgatado no epílogo, novamente ressurge a trilha com tom de deboche, em adversidade com o momento de aceitação que é encenado com emoção. É no mínimo irônico como Júlio deve aceitar sua realidade, sua identidade, e o filme no qual se encontra parece incapaz de se decidir a fazer o mesmo.

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