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Crítica | Vidro

Poucos filmes conseguem, além de resistir ao teste do tempo, crescer com o passar dos anos tanto quanto Corpo Fechado, do diretor M. Night Shyamalan. Lançado em 2000, ano seguinte ao imenso sucesso de O Sexto Sentido, o longa foi recebido de forma um tanto injusta, já que parte do público e da crítica depositavam na obra expectativas de uma grande reviravolta, ou seja, preocupando-se mais com o destino do que a jornada que, diga-se de passagem, foi executada com primor. Logo depois do primeiro X-Men e anos antes de Homem-Aranha chegar aos cinemas, Shyamalan havia criado uma história de origem de super-herói exemplar em sua compreensão do gênero.

Sua representação intimista – e minimalista – de heróis e vilões de HQs estava muito à frente do tempo e só passou a ser melhor apreciada posteriormente, quando o cinema de quadrinhos e suas fórmulas estavam já bem estabelecidas para serem subvertidas, o que incentivou Shyamalan a realizar uma sequência (agora nada) secreta para o longa, Fragmentado, no ano retrasado. Agora, em 2019, fecha uma inesperada trilogia com o aguardado Vidro, uma obra que resgata a essência de Corpo Fechado em suas reflexões acerca do gênero de super-heróis e vilões, que hoje dominam os circuitos de cinema. Por conta disso, é seguro afirmar que o novo filme chegou no tempo certo.

Vidro funciona bem tanto como sequência para Fragmentado quanto para Corpo Fechado, trazendo seus respectivos personagens em novas fases de suas vidas e juntando suas narrativas paralelas em uma só, mas também se sustenta sobre uma premissa única. A princípio, a trama assinada por Shyamalan apresenta-se como uma sequência comum, trazendo um David Dunn (Bruce Willis, estranhamente apagado) mais experiente em seu ofício de vigilante superpoderoso e na cola do também superpoderoso serial-killer Kevin Wendell Crumb (James McAvoy, ainda mais multifacetado), mas assim que os dois tem seu primeiro embate, o jogo muda e o filme passa a assumir uma abordagem bem mais curiosa desse universo.

Sem entregar mais detalhes que o necessário, pode-se dizer que a entrada da psiquiatra Ellie Staple (Sarah Paulson, ótima) na história traz a Vidro uma nova perspectiva mais questionadora e por consequência mais intrigante, que põe em crise tudo que havia ocorrido até então na franquia. Staple, que acredita que Dunn e Crumb são nada mais que lunáticos com delírios de grandeza, sugere que seus poderes extraordinários não são tão extraordinários assim, podendo ser justificados com fatos científicos. Mesmo que de início seja um pouco difícil comprar esta ideia, principalmente após o clímax de Fragmentado, o ponto de Staple é bem arquitetado no roteiro de Shyamalan e gera dúvidas que agregam ao suspense da experiência. A maneira como Sr. Vidro (Samuel L. Jackson) entra nesse jogo de incertezas é marcante, assim como a conclusão – que, aviso, não será do agrado de todos.

O trunfo de Shyamalan, afinal, sempre foi testar a crença e a descrença, nossas e de seus personagens, resultando em obras que sempre mantém o espectador adivinhando a todo momento, por mais frustrantes que sejam as respostas. Além disso, em um tempo em que cada super-herói conta com uma pirotecnia específica para manifestar seus poderes em tela, de uma forma sempre muito gráfica e extravagante, o diretor dá novo sentido aos efeitos especiais menos elaborados de sua produção, representando o poderio de seus personagens de forma tão discreta ao ponto de justamente suscitar as questões que Staple propõe. O esforço pela suspensão da descrença, bastante exigida pelos filmes do autor, nunca fez tanto sentido narrativo como agora, nesse universo em que HQs são ridicularizados por uns e consultados como enciclopédias por outros.

O que separa Dunn, por exemplo, de um ilusionista ou um homem que é apenas muito forte? E o que separa Crumb de um alpinista talentoso que escala paredes? Numa cultura de ver para crer, não é fácil convencer o público e Shyamalan sabe muito bem disso. A execução, portanto, não poderia ser mais arriscada para um fim de trilogia, especialmente neste fim de década. Com poucas cenas de ação e uma progressão paciente, que planta uma série de pistas falsas pelo caminho, Vidro deve frustrar aqueles que esperam por um grand finale àgil e repleto de embates mano-a-mano, ocultando a maior parte da violência e manifestação dos poderes. Shyamalan mostra-se capaz de fazer muito com pouco e continua dominando o uso do espaço extra-quadro – encarregando nossa imaginação do resto em diversos momentos, como a cena que envolve uma caixa d’água.

Quando a pancadaria ocorre, então, o cineasta prefere jogar com os pontos de vista dos personagens e o espaço da cena do que com catarses gráficas como explosões e destruição, com assistência da câmera criativa de Mike Gioulakis e a trilha carregada de suspense por West Dylan Thordson, dois destaques do longa anterior. O ato final, que pode até aparentar um pouco lento ou rudimentar – ou até involuntariamente cômico – ao lado das frenéticas batalhas vistas nos filmes da DC e da Marvel, chama atenção pela inteligência de sua execução e o uso destes elementos acima, ainda remetendo ao clímax de Poder Sem Limites por costurar a ação com materiais de câmeras de segurança – outro elemento importante à narrativa, ainda mais do que os dispositivos de gravação eram em A Visita.

Como alguém que foi marcado ainda na infância pela experiência isolada de Corpo Fechado, meu maior medo era de que M. Night Shyamalan abrisse mão de suas ideias mais ousadas para se adequar ao cinema de franquia atual, quem sabe transformando Vidro em um ponto de partida para um universo cinematográfico ainda mais amplo. O diretor não só passa longe disso, como também criou uma obra que, além de eficiente ao amarrar uma trilogia, agrega ao gênero do qual faz parte por valorizar seus aspectos mais únicos. Enquanto a Marvel Studios homogeiniza suas produções e a DC continua na busca por uma identidade nos cinemas, Shyamalan foi capaz de consolidar um universo de personalidade inconfundível, que deve ser lembrado e discutido por anos e anos.

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