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Mostra SP | Crítica: A Casa que Jack Construiu

A cada vez que Lars Von Trier retorna aos cinemas com uma nova obra, é praticamente inevitável contaminar-se com expectativas. Na última década, em especial, seus projetos são recebidos com um estado de alerta, devido a ene polêmicas que as cercam, e com A Casa que Jack Construiu isso não é diferente. Após dividir Cannes com sua violência chocante, o novo von Trier chega à Mostra SP com grande hype e deve novamente polarizar seu público.

Há anos em desenvolvimento, A Casa que Jack Construiu parte de uma proposta corajosa e difícil de vender: no caminho para o inferno, o serial-killer Jack (Matt Dillon) descreve ao poeta Virgílio (Bruno Ganz) momentos de sua carreira sanguinária em grande detalhe, dividindo-os em cinco incidentes dentre um total de 60 e tantos assassinatos. A partir desses atos, apresentados no próprio ponto de vista tortuoso do assassino, Jack quer convencer Virgílio de que é um artista como qualquer outro.

Como fez em Ninfomaníaca, von Trier pontua a ação com longos diálogos em off entre Jack e Virgílio, no estilo de vídeo-aulas. Quase caindo no território do ASMR não-intencional com falas monótonas, esses trechos são, na verdade, o que justifica a nova construção do dinamarquês. Através deles, conhecemos melhor a mente de um homem violento mas também culto e reflexivo, o que ajuda a humanizá-lo – mas não absolvê-lo, é claro. O que mais fica aparente nos devaneios, no entanto, é a maneira convencida e egocêntrica com que vê seus feitos.

Mas enquanto Lars… quero dizer, Jack, em sua cabeça, acredita ser um criminoso de perícia inestimável, a representação de seus atos em tela acabam por contradizê-lo. O assassino, na verdade, nem é tão inteligente assim, tendo seus atos facilitados por uma série de fatores externos, seja a extrema ingenuidade de uma vítima ou a completa despreocupação da polícia. Até mesmo a chuva parece estar a favor de Jack, quando surge milagrosamente para limpar o rastro de sangue que deixou a caminho de seu esconderijo.

A princípio, essas improbabilidades trazem um quê de farsa ao filme, pelo menos em seus dois primeiros incidentes. Destacam-se dois momentos de humor em especial: a conversa inicial dentro da van, na qual a personagem de Uma Thurman aponta todos os aspectos que fazem Jack parecer um serial killer, e o surto de TOC que aflige o assassino no momento de deixar a cena de um crime, imaginando manchas de sangue que esqueceu de limpar em lugares improváveis.

Porém, logo que avançamos para os atos seguintes, a violência passa a ser acompanhada pelo terror psicológico, o que torna a experiência mais indigesta do que era antes. O terceiro e quarto incidentes são, muito provavelmente, a causa da tamanha comoção em Cannes, especialmente pela quebra de certos tabus. Assim, passamos a ver Jack – e o filme – com outros olhos, tornando-o menos carismático e aproximando-o de um completo antagonista.

O que é capaz de manter a audiência próxima, mesmo durante eventos tão horripilantes, são os contra-argumentos feitos por Virgílio, que antes duvidava da ruindade de Jack e agora também passa a vê-lo em uma luz muito mais negativa. Interpretado pelo ilustre Ganz, o poeta surge como um bom mediador entre a sanidade do público e a insanidade do protagonista, além de questionar a visão cínica com que o último olha para o mundo.

Conforme o filme se aproxima de seu encerramento, fica claro que Jack e Virgílio são, na realidade, representações do próprio von Trier em crise, como se fossem o anjo e o diabo em cada um de seus ombros. Ambos artistas, eles questionam o papel da arte e possuem visões diretamente opostas: um vê a violência como expressão artística, o outro, o amor. Infelizmente, por mais que a reflexão suscite interesse, von Trier a faz de maneira desnecessariamente prolixa e, portanto, cansativa.

Também pode ser descrita assim sua proposta de direção, novamente contando com apoio do fotógrafo Manuel Alberto Claro. Apesar de alguns planos muito bem arquitetados, em especial nos minutos finais, a câmera desencontrada do diretor começa a pesar depois de um certo tempo de projeção. A montagem de Jacob Schulsinger e Molly Stensgaard, por sua vez, não é tão variada quanto o que fizeram em Ninfomaníaca. Assim, as duas horas e meia de duração acabam sendo mais repetitivas que o esperado.

A Casa que Jack Construiu necessitava de uma retórica mais afiada, algo em que Lars von Trier deixa a desejar desta vez. Como os próprios penados que acompanham Virgílio rumo ao inferno, o diretor passa a se perder demais em meio a confissões e desculpas, o que acaba tirando o foco da narrativa mais do que deveria. Além disso, se ainda chegava a conclusões arrasadoras em longas anteriores – incluindo Ninfomaníaca -, aqui encerra, no máximo, com uma frase de efeito engraçadinha.

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