Em um mundo ideal, seria fácil criticar Infiltrado na Klan, novo filme de Spike Lee, por sua completa falta de sutileza. Mas não vivemos em um mundo ideal, e uma obra como essa, premiada pelo júri de Cannes neste ano, se faz necessária mais do que nunca. Lee, conhecido por seu trabalho incendiário, novamente grita com o público, explicitando sua mensagem anti-racismo a todo momento e concentrando os holofotes sobre o ressurgimento de discursos perigosos, nos EUA e no mundo. Nestes tempos tumultuados, não há tempo para ser sutil, e esta é uma história que deve ser escutada.
Infiltrado na Klan é baseado na história real de Ron Stallworth (John David Washington), policial negro que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan no ano de 1978. Desde já, é uma premissa absurda, algo que o próprio filme atesta nos letreiros iniciais. No caso, a infiltração se deu de dois jeitos: enquanto o Stallworth real se comunicava com os membros da Klan por telefone, seu parceiro Flip Zimmerman (Adam Driver) assumia seu lugar nas reuniões presenciais do grupo para preservar o disfarce. A missão tomou proporções surpreendentes, já que os dois conseguiram desmascarar diversos membros da ‘organização’, incluindo seu diretor regional David Duke (Topher Grace).
Destaca-se primeiramente o ótimo elenco, em especial Washington, filho de Denzel, e Driver nos papéis principais. Por mais que os dois tenham a chance de se divertir nos momentos de comédia, entregam atuações de peso que tornam palpável sua angústia crescente de manter contato com pessoas tão consumidas por um ódio cego e infundado. Do outro lado, como o cabeça da Klan, Grace interpreta o líder racista com uma normalidade assustadora, enquanto seus ‘minions’ são muito bem representados por Ryan Eggold, Jasper Pääkönen e Paul Walter Hauser. Laura Harrier, de Homem Aranha: De Volta ao Lar, também faz uma boa participação como uma estudante engajada, mesmo que não tenha tanto tempo em tela.
Não bastando a suspensão de descrença exigida já pela própria premissa, o roteiro escrito por Lee, Charlie Wachtel, David Rabinowitz e Kevin Willmott consegue torná-la ainda mais inacreditável, criando um suspense policial eletrizante com toques de comédia. Como se trata de um ‘lance de Spike Lee’, a direção é livre e solta na missão de trazer essa história às telas, frequentemente tomando liberdades para abrir parênteses no meio da ação, seja para discutir outros filmes ou tópicos políticos e culturais da atualidade. Este, na verdade, o grande acerto de Infiltrado na Klan, mesmo que sua trama às vezes perca foco em meio a tantas mensagens e abstrações.
Ao longo de seus 135 minutos de duração, fica cada vez mais claro que Lee não está interessado em como a história de Stallworth realmente se desenrolou, e sim no que ela representa, tanto culturalmente quanto politicamente. Na verdade, o diretor estabelece uma relação clara de causa e efeito entre cultura e política, especialmente quando discute o efeito de filmes e outras produções sobre a sociedade, para o bem ou para o mal. Lee não só dá início a Infiltrado na Klan com uma cena de E o Vento Levou, mas também apresenta um longo trecho em que se conta uma triste história de como o épico O Nascimento de uma Nação, que glorificava a imagem da KKK, influenciou o linchamento de um homem negro. Do lado positivo, Lee celebra o cinema blaxploitation dos anos 70, que deu protagonismo aos negros e cujo estilo é replicado aqui.
Porém o diretor não se prende ao passado, afinal sutileza e Spike Lee não rimam. Infiltrado na Klan nem se dá ao trabalho de disfarçar seus paralelos com a atual situação política dos EUA, começando pelas piscadinhas que o filme dá ao parafrasear certas figuras e comparar seus discursos perigosos lado a lado com aqueles defendidos pelos antagonistas da história. Conforme a narrativa avança, deixam de ser apenas piscadinhas e se tornam comentários mais explícitos, como quando o Sargento Trapp (Ken Garito) detalha a Ron o processo que permitiria um sujeito como David Duke chegar ao alto escalão político com seus ideais duvidosos. Diante da explicação, Ron ri de descrença, enquanto o público ri de nervoso.
Se neste ponto já não ficou claro do que se trata, o filme de Lee caminha para uma conclusão trágica que nos leva às marchas recentes na cidade de Charlottesville. Mesmo que se desenrole estritamente em solo norte-americano, espera-se que Infiltrado na Klan ressoe de jeito universal em outros cantos do mundo. Além de levar o público aos bastidores do ódio, em que se manifesta de forma nua e crua, Spike Lee nos lembra que esse discurso se esconde por trás de máscaras e frases feitas antes de chegar ao poder. Assim como acordou o público para questões veladas com Faça a Coisa Certa e Malcolm X, o cineasta nos acorda novamente com um grito furioso de resistência. Inclusa na programação da 42ª Mostra SP, é uma obra que merece a atenção de todos, sejam eles amantes ou ‘haters’ do cinema engajado de Lee.