Uma expressão muito comum na Hollywood do século passado era ‘development hell’, ou ‘development limbo’, que significa inferno do desenvolvimento. Tal expressão é usada para descrever projetos, no caso de cinema, filmes que possuem ou tiveram um período de produção muito longo, com paradas, recomeços e assim por diante. Alguns casos, para grande frustração, chegam até a encerrar a produção em definitivo, pois quem produz percebe que aquela ideia não vai mais para frente.
Dito isso, finalmente, está disponível para o público assistir The Man Who Killed Don Quixote na Mostra SP. A obra do prestigiado autor Terry Gilliam que começou a desenvolver sua ideia de trabalhar uma história baseada no romance Don Quixote de Miguel de Cervantes, em 1989, ou seja, vinte e nove anos atrás, começou a tomar forma e dar seus primeiros passos em 1998, quase dez anos depois. À época, a produção contava com Johnny Depp como protagonista, além do hoje falecido ator francês Jean Rochefort como Quixote.
Mas, com um número significante de dificuldades e imprevistos, que vão de equipamentos destruídos em uma enchente, a saída de Jean Rochefort devido problemas de saúde, obstáculos para conseguir seguro na filmagem, além de embaraços financeiros, o projeto foi caindo em um limbo, e parecia que nunca iria sair de lá. Nesse processo, passaram muitos artistas envolvidos em The Man Who Killed Don Quixote, como: Ewan McGregor, Jack O’Connell, Robert Duvall, Michael Palin, incluindo o falecido ator inglês John Hurt.
Porém, enfim a obra de Terry Gilliam saiu do limbo, e chega a Mostra SP, estrelada por Adam Driver, o Kylo Ren da cine série Star Wars, e o ator galês Jonathan Pryce como o personagem clássico do romance de Miguel de Cervantes, em um filme que conta a história de Toby, um cínico publicitário, que se envolve nas ilusões e alucinações de um sapateiro espanhol, com quem já havia gravado dez anos antes um filme, que acredita ser Don Quixote. Fugindo de alguns problemas que criou, acaba por se envolver em aventuras absurdas e surreais, onde se vê diante das trágicas consequências a todos envolvidos na gravação de seu filme, feito na juventude, e que mudou o destino e destruiu as esperanças e sonhos dos habitantes de uma pequena vila na Espanha.
Óbvio, que passando tanto tempo com uma mesma história na cabeça, ela terá mudanças e mais mudanças, e consequentemente, existe a possibilidade de o filme sofrer com isso, pois é uma obra que pertence a muitos tempos diferentes, o que acaba sendo o caso de The Man Who Killed Don Quixote. Em resumo, o longa de Terry Gilliam não é, e passa longe, de ser um desastre, mas acaba por se mostrar irregular dentro da narrativa abilolada do cineasta americano/britânico.
A parte boa, e extremamente convidativa, proposta por Gilliam é que não se tente definir ou entender sua obra como algo real, ou até imaginativo, o que até se transforma em tarefa difícil após meia hora de duração. Ao invés, mais prazerosa será a jornada de Toby ao lado do peculiar Don Quixote para o espectador, se este não buscar qualquer bom senso racional.
Assim, a interlocução, muito divertida, entre o par de atores consegue elevar The Man Who Killed Don Quixote em seus melhores momentos. Não é surpresa que um ator experiente como Jonathan Pryce dê conta do recado, e mais, pareça tão a vontade no papel do “herói” reacionário e esquizofrênico. Da mesma forma, seduz cada vez mais, a figura alta, desembestada e muito carismática de Adam Driver, ator de ótimo timing cômico.
Uma pena que esta proposta de Gilliam de fazer um filme, dentro de um filme, dentro de outro, em um tipo de tripla metalinguagem cinematográfica, vai caindo por terra quanto mais se aproxima de sua resolução, que é muito mais dramática, e infelizmente, ineficaz. O aspecto pitoresco persiste, graciosamente, mas torna-se inoperante todo o peso dramático imbuído nesse fantástico mundo onde nada parece ser o que realmente é.
Vinte e nove anos em desenvolvimento, tudo o que vem à mente é o que seria de The Man Who Killed Don Quixote sem todos os percalços encontrados pelo caminho? Aí uma resposta que nunca conheceremos, mas gratificante, quase três décadas, ver uma ideia que enfim, virou realidade.