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Locke & Key | Crítica - 1ª Temporada

Depois de uma década de problemas e reformulações, Locke & Key finalmente ganhou uma adaptação para explorar todo o potencial do universo criado por Joe Hill e Gabriel Rodriguez, mas o resultado desta conturbada empreitada acaba sendo consideravelmente desapontador para os fãs, e dificilmente conseguirá cativar novos espectadores tanto quanto poderia. 

Antes de entrarmos em mais detalhes sobre a série em si, levando em consideração a sua proposta atual, é preciso contextualizar o que as HQs apresentaram anos atrás, e como o potencial deste universo foi sendo construído para, então, ser explorado com uma perspectiva diferente pela nova produção.

Se há quem discorde, sinta-se livre para comentar, mas creio que uma boa referência para o que os fãs esperariam de uma adaptação fiel de Locke & Key, seria o recente filme “It – A Coisa” de Andy Muschietti. A história de Bode (Jackson Robert Scott), Kinsley (Emilia Jones) e Tyler (Connor Jessup) nunca deixa de ser uma jornada sobre superação e crescimento, mas também está repleta de terrores que vão muito além do que se espera de uma típica história adolescente. O material original tem um foco considerável nas típicas tramas de colegial, mas utiliza-se desta atmosfera para capitalizar em cima do contraste com cenas realmente assustadoras e, as vezes, violentas. 

Nesta versão da Netflix, no entanto, a proposta de Locke & Key se torna menos chocante para o público-alvo da série, com o tom da narrativa deixando de prezar os momentos mais provocativos, e preferindo manter o foco nas características do gênero que os americanos chamam de “coming-of-age” (o amadurecimento adolescente). Até aí, não há problemas com a proposta, pois por mais que os fãs possam ficar frustrados com a mudança tonal, ainda há muito o que se aproveitar dentro desta história de fantasia, com ou sem sangue voando na tela. 

O problema, no entanto, começa quando se percebe que a série foi mecanicamente produzida para servir como recomendação ao usuário da plataforma que terminar de assistir algumas das produções mais bem sucedidas da Netflix. Pode ter certeza que depois de terminar a nova temporada de “O Mundo Sombrio de Sabrina” ou, obviamente, “Stranger Things”, Locke & Key estará lá, pedindo para ser conferida. 

Depois de tantas tentativas frustradas de fazer a série sair do papel (em um certo momento, tentou-se até lançar uma trilogia de filmes), é perceptível que os produtores passaram por tantas reformulações do material, que eventualmente perdeu-se uma perspectiva mais abrangente desta trama como um todo. Existem algumas soluções para adaptar esta história à uma narrativa seriada que são realmente eficientes, pensando em como se entrega a gratificação e o sentimento de conclusão necessários para um fim de temporada, por exemplo. 

Mas ao mesmo tempo, alguns elementos que acabaram sendo sacrificados prejudicam seriamente a progressão da trama, além do impacto deste universo e de seus elementos sobrenaturais. Eu nunca tinha parado para pensar que toda a mitologia de Locke & Key poderia soar tão “forçada”, mas assistindo a série, foi este o sentimento que me incomodou depois de alguns episódios e creio que o motivo para este incômodo, é por que o material original possuía uma construção de universo muito mais orgânica do que podemos ver nesta primeira temporada. 

Como disse, me parece que boa parte dos problemas da série são consequências do longo processo de produção, onde os responsáveis foram deixando de priorizar certos aspectos da trama e do universo, por já contarem com eles na cabeça, e se esqueceram de que os novos espectadores não estavam totalmente acostumados ao conceito de chaves mágicas e demônios de outra realidade, sem que nenhuma explicação fosse realmente necessária para a evolução da narrativa. 

Com dez episódios, uma boa parte da temporada gira em torno de tramas um tanto rotineiras envolvendo a vida escolar de Kinsley e Tyler, mas enquanto Kinsley tem um arco narrativo claro e um conflito interessante de se acompanhar (principalmente com a questão envolvendo a Chave de Cabeça), Tyler é um personagem incomodamente superficial, com seus problemas sendo estabelecidos no início (e vindos direto do material original), mas sem muito evolução ou atitudes que possam contribuir para o apego ao personagem. 

No que diz respeito ao coadjuvantes, existe um potencial merecidamente explorado por aqui, ao tentar-se estabelecer uma dinâmica de grupo entre os irmãos Locke e seus novos amigos de colégio, traçando o paralelo com o misterioso grupo de amigos de seu pai. Este é um aspecto que, inclusive, o material original nem sempre conseguiu estabelecer com tanta eficiência quanto poderia, e considerando o foco da série, esta seria a oportunidade perfeita para evoluir este lado da história, e ainda engajar o espectador de forma distinta para os próximos desafios da trama. 

A estética da série segue alinhada com o que já está plenamente estabelecido dentro de abordagens pragmáticas de séries da Netflix. Há momentos em que se arrisca um pouco mais no visual assustador, mas sempre dentro da zona de conforto que caracteriza os exemplos citados mais acima. A mesma abordagem segura também é sentida na inclusão formuláica de músicas pop que acompanham sequências com passagens de tempo, ou a típica contextualização que encerra episódios. 

Mas o que realmente deve manter os espectadores envolvidos com a temporada, é o quanto este conceito de chaves mágicas consegue implicar diversas possibilidades para inúmeras tramas fantasiosas, afinal, a curiosidade despertada pela descoberta de uma nova chave é sempre empolgante. O que acaba tornando esta temporada menos atraente, é a falta de um sentimento de urgência e perigo que nem sempre consegue ser passado ao espectador de forma natural. Este grande problema é, na verdade, uma consequência da abordagem equivocada do antagonista desta história, que não consegue manter sua ameaça viva sem o mesmo espaço que tinha nas HQs. 

No fim das contas, Locke & Key não precisava ser tão fiel ao seu material original, e o potencial de seu universo continua evidente dentro uma narrativa seriada. Mas ao tratarem esta história de uma maneira tão segura, pragmática e formuláica, visando atingir um público mais abrangente (mas, ainda assim, limitado pela classificação indicativa), muito do impacto deste universo foi seriamente prejudicado. A temporada não parece ter trama suficiente para preencher seus dez episódios, e para um próximo ano, será necessário que os produtores encontrem, ao menos, uma certa liberdade para criarem e explorarem a mitologia da série com mais entusiasmo do que apenas com as típicas sub-tramas colegiais. 

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